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Julio Pompeu: ‘O asilado’

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Julio Pompeu (*) –

Tudo passa. Tudo que o tempo fez, o tempo desfaz. Não há mal que sempre dure. Depois da tempestade, vem sempre a bonança. Todas estas frases de consolo escoavam pelas caraminholas da cabeça de Jair. Quando não vinha de suas memórias, aparecia na boca de amigos que tentavam dar-lhe conselhos neste momento difícil. Tudo em vão. Sabiam que Jair só ouvia os próprios conselhos e, mesmo assim, não os seguia quando apontavam para a necessidade de aceitar seus erros, de encarar a realidade. A única realidade que importava para Jair era a de seus sentimentos e, agora, ele sentia medo, muito medo.

“Se você encarar, assim, de frente, peito aberto, mostrará para todos a sua força. Pense na causa que você representa!”, disse Amâncio, já com alguma indignação. Não aguentava ver Jair daquele jeito. Por ser valente em excesso, não compreendia a covardia dos outros. Principalmente em Jair, que sempre lhe pareceu corajoso com as palavras. Que nunca hesitou em magoar, ofender ou ferir alguém com suas ideias.

Foi esta coragem aparente que o seduziu em Jair. Passou a segui-lo como aquele que defenderia as ideias que os uniam. Era preciso ser corajoso e até violento para eliminar as ideias e pessoas que atrapalhavam seu ideal de um mundo melhor. Ele mesmo estava disposto a sacrificar a vida por isso. Acreditou que Jair também tivesse essa altivez de colocar um ideal acima de tudo, acima da própria vida.

Agora, decepciona-se ao ver aquele que dizia que a pátria estava acima de tudo colocar-se em primeiro lugar. Para Amâncio, Jair amedrontado olhava a pátria de cima para baixo. Esperava que ela estivesse sempre a serviço de seus desejos e não o contrário. Na desconformidade com a pátria, cogitava o abrigo de uma pátria estranha.

“Certamente a fuga lhe daria proteção, mas e a causa? Seria enfraquecida com este seu exemplo”, insistia Amâncio em sua inconformidade que não passava com o tempo. Mas Jair era irredutível em sua intenção de fuga. E fuga do quê, exatamente? Perguntava-se Amâncio. Não estiveram há pouco inflamando a massa a protegê-lo? Não tinha tantos aliados para sua causa entre policiais e militares? Até religiosos a dizer que sua pregação da violência era divina! Não havia tanta gente disposta a matar e morrer por ele? Então, para que temer a prisão? Ainda mais a prisão especial!

Amâncio via Jair como alguém especial, sem dúvidas, mas não como alguém mais especial que sua causa. Entendia que sacrificar-se por algo maior do que ele era sinal de grandeza de espírito e, logicamente, sacrificar a causa pelo próprio bem-estar era sinal de baixeza. E era essa baixeza, essa covardia que gerava tanto incômodo em Amâncio. Não pela baixeza ou covardia em si. Viu inúmeros covardes ao longo de sua vida sem que isso lhe causasse mais do que uma ponta de desprezo. Mas pelo fato de que ele se percebia, naquele momento, como alguém que entregara sua vida a um covarde.

Só agora percebia que aquele que seguia não era corajoso, mas só ambicioso. Alguém que queria poder para si e não para uma causa. Que abandonaria seus princípios com facilidade caso os princípios levassem a algum sacrifício próprio. Entendeu que para sacrificar os outros não é preciso coragem alguma, mas apenas a indiferença de quem se acha acima de tudo e de todos e, por isso, não hesita em usar a tudo e todos para seus propósitos mais mesquinhos.

Enquanto Jair, distraído, acertava com alguns bajuladores os detalhes de sua corrida para a embaixada estrangeira, Amâncio saiu sem se despedir. Foi-se sem olhar para trás, envergonhado por ter confundido, por tanto tempo, a arrogância de um narcisista covarde com a grandeza de um herói.

(*) Escritor e palestrante, professor de Ética do Departamento de Direito da UFES, ex-secretário de Direitos Humanos no ES.

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