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‘Fantasias’, por Julio Pompeu

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Julio Pompeu (*) –

Igor e Miguel compartilharam a infância. Vizinhos, viam-se e brincavam quase todos os dias. Compartilharam as fantasias da infância em que a caixa de sapatos recortada e pintada a canetinha e tinta guache era o hospital e a colagem de várias caixas, de pasta de dentes a sabonetes, era a delegacia de polícia. Qualquer coisa era útil às suas brincadeiras, independente das formas, cores ou da utilidade que os adultos comumente atribuíam.

Cresceram e mudaram-se. Muitos anos se passaram sem se verem. Sem saber do destino do outro e tendo um do outro apenas a lembrança da boa amizade durante uma infância feliz. Reencontraram-se por acaso. “Igor?”. Miguel reconheceu o amigo na hora. Sorriram e abraçaram-se na hora, como se ainda fossem crianças. Trocaram contatos e combinaram encontrar-se. Trabalho, casamento, as coisas que a vida trouxe e tirou de cada um, muitos eram os assuntos para colocarem em dia.

Combinaram em um restaurante. O favorito de Miguel. Novo abraço. Pediram petiscos porque nenhum dos dois queria perder tempo com algum prato. Estavam ansiosos para refrescar a memória dos dias mais felizes de suas vidas. Lembraram-se e riram das brincadeiras, da briga com o Felipe na escola, da Tia Aurora e dos deveres de casa insuportáveis, do vizinho rabugento da casa da esquina que acusou injustamente Igor de roubar goiaba no seu quintal, de como o pai de Miguel foi defendê-lo. Todas boas lembranças, comemoradas com sorrisos, gargalhadas e brindes.

Quando começaram a falar de suas vidas daquele tempo em diante, os sorrisos foram minguando. A morte do pai de Miguel, o desemprego do pai de Igor, o câncer da esposa de Igor, a separação de Miguel e outras tantas dores inexoráveis da vida adulta. Da alegria compartilhada, agora consolavam-se e demonstravam compaixão mútua. Igor tentou desanuviar a conversa puxando assuntos que nada tinham a ver com a vida pessoal. “E o país, e o mundo, hein?”.

Como na brincadeira de infância, Igor tornou-se médico. Falou de quando foi até o aeroporto vaiar e ofender médicos cubanos. De todo exagero sobre a pandemia. Defendeu a carnificina israelense em Gaza sem poupar nem mesmo os Médicos Sem Fronteiras, “ninguém os mandou ficarem por lá”. Miguel ouvia àqueles discursos num misto de tristeza e incredulidade. Não aguentou-se calado e começou a dizer o que pensava.

Também como na brincadeira de infância, tornou-se delegado de polícia. Não era daqueles que saía por aí atirando com fuzil em lugares cheios de pobres, mas daqueles que investigam e prendem. Via o ataque do Hamas como criminoso e a reação indiscriminada de Israel como genocida. E não entendia como alguém poderia não se compadecer por aquela carnificina cruel ou pior, comemorá-la! Acompanhou com um misto de tristeza e raiva os vários absurdos que levaram e levam tanta gente à morte aqui, lá e em outros tantos lugares tristes do planeta. Miguel anda armado, mas tem horror à morte. Igor estudou para salvar vidas, mas é indiferente ao sofrimento e morte de tanta gente.

Cresceram e mudaram. Suas fantasias não são mais as mesmas. Tornaram-se adultos que seguiram caminhos morais diferentes. Não conseguiriam mais brincar juntos. Não conseguem mais sequer conversar.

A mesa foi ficando fria. Os sorrisos minguaram. Ambos seguraram o nojo que agora sentiam um pelo outro, em respeito ao passado e ao ambiente do restaurante. Despediram-se formalmente, sem abraços, só mãos levantadas que podiam significar tanto um “tchau” quanto um “afaste-se”. Falaram em se ver novamente, mas apenas por polidez. Sabiam que daquele dia em diante, se o acaso os fizer se encontrarem novamente na rua, farão de conta que não viram um ao outro.

(*) Escritor e palestrante, professor de Ética do Departamento de Direito da UFES, ex-secretário de Direitos Humanos no ES.

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