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Julio Pompeu: ‘O herói’

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Julio Pompeu (*) –

O capitão falou sem rodeios. Com aquele peso, naufragariam. Toda carga e pesos desnecessários já foram lançados ao fundo. A partir de agora, só o que resta é sacrificar alguém. Ao menos um. Institivamente, os olhares de quase todos alcançaram G, visivelmente o mais pesado da embarcação. Olhavam e desolhavam. Por detrás dos olhares, algumas mentes pensavam em como matá-lo. Outras, amedrontavam-se com a possibilidade de que o sacrificado fosse ela e não o passageiro gordinho. Todos paralisados entre pensamentos covardes e homicidas até que G, resignado, levantou a mão e disse: “eu vou”.

Ninguém escondeu o alívio. Alguns demonstravam o rosto feliz pela esperança recobrada. Com um movimento de cabeça, o único que agradeceu pela coragem do sacrifício foi o capitão. Sem demora, G pulou do barco para a água fria e agitada.

Enquanto lutava para não se afogar, viu o barco afastando-se depressa e cambaleante. Sabia que não aguentaria muito tempo naquela situação, mas decidiu resistir pelo menos até o barco desaparecer de sua vista. Pensou que delirava quando viu um raio atingindo o barco e uma enorme explosão lançando seus pedaços para todo lado. Conseguiu agarrar-se num destroço flutuante.

Foi resgatado no dia seguinte. Pescadores que deixaram-se atrair por três pedaços de casco que boiavam no mar já calmo o encontraram fraco, mas vivo o suficiente para lhes contar a história. Em terra, descobriu que era o único sobrevivente daquele naufrágio.

Sua história ganhou a internet. Seu depoimento, contado com emoção e a incompreensão do porquê ainda estar vivo, foi curtido por muitos. Comentado por outros tantos. Analisado por milhares de especialistas nas próprias opiniões. Ridicularizado por outros tantos. Criticado por gente que se dedica a desgostar do que alguém gostou.

Religiosos diziam, emocionados, que era um milagre. Mas quando G revelou que era ateu, seus olhos passaram a enxergar o dedo do demônio onde antes viam as mãos protetoras de Deus. Chegaram até a culpar G por todas as mortes no naufrágio. Era o diabo matando bons cristãos e salvando apenas seu adorador.

Mas os mais raivosos eram os que conheciam ou amavam um dos mortos no naufrágio. Não conseguiam perdoar, em hipótese alguma, a sobrevivência de G no mesmo evento que levou sua pessoa querida. Era injusto. G não lhes parecia merecer ter sobrevivido. Por que mereceria? Sujeito simples. Não era muito inteligente. Nem bonito. Não tinha dinheiro. Não era empreendedor que pagava salário para alguém. Nem político, magistrado ou artista. Era só o G mesmo. Parecia alguém nascido naquele naufrágio, sem nada de excepcional além da sobrevivência àquela tragédia. Um sobrevivente cuja sobrevivência era uma afronta ao senso de justiça daquela gente.

Tornou-se odiado. Nas redes sociais e nas ruas. Foi ofendido, difamado, caluniado, cancelado. Agredi-lo, seja como fosse, tornou-se um ato heroico. Motivo de jubilosa exibição na internet.

G não reagia. Resignou-se calado. Aceitou sua condenação tal como quando lhe dirigiram os olhares amedrontados e assassinos no barco. Estava, novamente, à deriva. Desta vez, num mar de sentimentos e ressentimentos mesquinhos.

Na rua, enquanto um odiador o distraía, outro acertou-lhe em cheio a cabeça com um tacape. O golpe certeiro o levou inconsciente ao chão. Morreu aos poucos, enquanto seu corpo inerte recebia chutes, cusparadas, xingamentos e perdia sangue. O espetáculo foi exibido com júbilo na internet, com músicas de fundo e memes e a exaltação dos heróis que livraram este mundo daquele infame.

(*) Escritor e palestrante, professor de Ética do Departamento de Direito da UFES, ex-secretário de Direitos Humanos no ES.

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