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Julio Pompeu: ‘Espetáculo’

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Julio Pompeu (*) –

A noite adequada de frio ameno cobre a areia ainda quente. A multidão vinda de todos os lugares peregrina para a frente do palco. Em breve, o espetáculo na praia vai começar. Há risos, excitação e tensão no ar. Tudo ao mesmo tempo. Multidão é assim, na mistura de todos, faz um. Vira massa amorfa na qual cada um se ilude na sensação de ser mais que parte do todo.

Alguns vão para lá para se perderem de si mesmos. Esquecer, pelo instante do espetáculo, das coisas da vida que gostaríamos que não fizessem parte da vida. Para se sentirem maiores do que são e, com isso, driblarem, só pelo tempo das luzes do espetáculo, a impotência de suas vontades diante dos abusos de poderosos.

Alguns outros vão para lá para se encontrarem. São aqueles há muito perdidos de si mesmos. Cujas ideias e sentimentos se desencontraram dentro de si mesmos por algum desencontro havido na vida. Talvez, no meio do todo da multidão, encontrem seu lugar. Seu chão perdido. Seu eu partido. Quem sabe?

Há outros, ainda, que estão bem de tudo. De bem com a vida porque não sabem bem das coisas da vida. Não querem saber. As coisas como elas são, para estas pessoas, são tristes demais. E tristeza demais é vida de menos para elas. Querem manter sua alegria com fantasias no lugar das realidades, como num Carnaval de acontecimentos dos quais é preferível alienarem-se. Alienam-se nos estrondos das caixas de som e na cegueira das luzes do grande palco.

Estão por lá também os que querem achar pessoas. Alguns, só por achar. Outros, por acharem que só no encontro com os outros encontrarão o que procuram na vida, que não é mais do que a própria vida, mas compartilhada com alguém ao lado. Querendo ou não, a vida é sempre compartilhada. Há gente boa e gente má para se compartilhá-la. Há quem veja mais gente boa que má por aí. E quem perceba mais gente má do que boa. E todas as pessoas na nossa vida são inevitáveis em nossa vida. Mas os que querem achar alguém na multidão do espetáculo, acham que podem escolher quem o destino atravessa em sua vida. Normalmente, só acham desilusões, sem com isso perderem a ilusão de que acharão alguém.

Outros, de olhar mais vivo e atento aos detalhes da multidão, também estão à procura. Não de alguém, mas das coisas de alguém. Neste mundo em que dinheiro tudo compra, até a honra, buscam para si a honra de surrupiarem o que não lhes pertence. E há muito o que surrupiar na multidão. Como eles próprios foram, já há muito tempo antes do espetáculo, surrupiados de sua própria dignidade, surrupiam as coisas de gente que se acha digna só porque têm as coisas que o dinheiro compra. É gente que se vendeu ao dinheiro só porque com dinheiro se compra gente. Nem querem saber do espetáculo. Querem mesmo só sua dignidade de volta. E estão dispostos a qualquer indignidade por isso.

A multidão, no fim das contas, é só um pedaço de uma multidão muito maior. Multidão do espetáculo da vida que se vive como pode, com quem pode, para o que der, para o que vier.

(*) Escritor e palestrante, professor de Ética do Departamento de Direito da UFES, ex-secretário de Direitos Humanos no ES.

Ilustração: Mihai Cauli
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