Por Assessoria de Comunicação – Cimi –
Tornou-se comum ouvir entre os Guarani e Kaiowá um resumo perturbador de como se sentem a cada investida das polícias estaduais contra retomadas e aldeias: “estão tratando a gente como animal (…) não somos bichos”. A frase é de um indígena da retomada da Fazenda Ipuitã, sobreposta à Terra Indígena Guyraroká, em Caarapó (MS).
A Secretaria de Segurança Pública do estado tem afirmado que há “proporcionalidade” nas ações do Departamento de Operações de Fronteira (DOF), Polícia Rural e Tropa de Choque. Também que tem atendido as ocorrências por chamadas do 190. O flagrado na sede da fazenda, com uma base policial montada, e a violência dos ataques, contando com tentativas de atropelamento, as afirmações oficiais.

Os relatos a seguir tratam dos eventos ocorridos durante o ataque da Tropa de Choque do último dia 16 de outubro, com “tiroteiro, gente correndo, chorando, sangrando”. Ao menos nove indígenas ficaram feridos a tiros de bala de borracha e intoxicados por gás – um jovem de 14 anos foi atingido na cabeça e três mulheres grávidas passaram mal com a fumaça.
“Um de nós precisa dar a vida pra conquistar a terra. Em (Nhanderu) Marangatu foi assim”, diz Guarani e Kaiowá
Entre erguer barracos, sucessivamente destruídos pela polícia e tratores da fazenda, recolher lenha para a fogueira e vigiar a movimentação de jagunços, o principal desafio é seguir resiliente e não deixar o ódio com o qual os tratam persuadi-lo a também se entregar ao ódio – este é um cuidado debatido na retomada.
Como se tornou costume, o indígena pede à equipe do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) para não ser identificado por temer represálias não apenas a ele, mas também à família. Parte dela seguiu com o Guarani e Kaiowá para a retomada.
“Um de nós precisa dar a vida pra conquistar a terra. Em (Nhanderu) Marangatu foi assim. Um morreu (Neri Guarani e Kaiowá) e então eles deram a terra. É assim a justiça nesse mundo. Nos tratam como animais. Se tiver que ser assim no Guyraroká, morro pra deixar a nossa terra, a morada dos nossos antigos, pros meus filhos”, afirma.

Imagem revela a presença da Polícia Militar na sede da fazenda desmentindo nota da Secretaria de Segurança Pública. Foto: Comunidade de Guyraroká
“Tiroteio, gente correndo, chorando”
Logo nas primeiras horas da manhã, a Tropa de Choque da Polícia Militar passou a escoltar tratores para furar o bloqueio que os indígenas fizeram com o objetivo de proteger a retomada e protestar contra o uso de agrotóxicos – uma nova lavoura de monocultivo vem sendo preparada.
As máquinas avançavam sobre os barracos com os policiais, atrás de escudos, lançando bombas e tiros sobre a comunidade
Lembra das muitas vezes em que foi ofendido, xingado. Não há raiva envolvendo suas palavras, mas nas que dirigem a ele. Analfabeto. Imundo. Vagabundo. Os Guarani e Kaiowá não se abalam. Sabem de si. O mundo envenenado por palavras ruins é o que os afeta. Como podem ser tão ruins?
“Estamos nos defendendo, pelo menos isso eu acho que a gente tem direito. Chorei, chorei muito. Um de nós talvez precise morrer. Talvez seja eu”, diz.
Os feridos foram atendidos na própria retomada logo após os ataques. Na imagem, ao fundo, os barracos destruídos. Foto: Lídia Farias/Cimi
Pesadelo: “Tá vindo! Tá vindo! Tá vindo!”
O Guarani e Kaiowá segue relatando o ataque de 16 de outubro. “Eu estava me protegendo no barraco e a pá escavadeira veio para enterrar o meu barraco, e quase me enterrou junto. Eu tentei escapar, mas a pá carregadeira voltou para me empurrar com tudo”, conta.
Um dos postes usados para sustentar o barraco caiu sobre o indígena. Enquanto isso, a máquina seguia destruindo tudo ao redor dele
“A sorte é que eu escapei por baixo porque o poste ia cair na minha coluna, (mas acabou que) caiu o poste na minha cintura, eu não consegui nem correr (na hora). A tropa já tinha nos encurralado (e quando me livrei do poste) precisei correr com uma perna (a outra estava machucada), e as balas cruzando, tiros. Bala vinha cruzando, muito xingamento”, relata.
Enquanto o indígena se livrava dos escombros do barraco para fugir, a esposa levou um tiro de bala de borracha. “Meu filho presenciou tudo aqui. À noite ele não consegue dormir. Acorda gritando: tá vindo! Tá vindo! Tá vindo!”, diz.
O Guarani e Kaiowá reforça que apesar de todo o sofrimento, “não vamos recuar, não. Vamos seguir em frente. Temos muitas crianças. Não quero mais policiais aqui. Estão tratando a gente como animal. Parece que não tem nada nesse mundo que impeça de tratar a gente como cachorro, bicho do mato. Precisamos apenas das nossas terras”.
Mulheres indígenas foram as mais duramente atingidas pela violência policial do último dia 16 de outubro. Foto: Lídia Farias/MS
Xingamentos e tentativa de atropelamento
Mulheres, crianças, idosos. Para a polícia, pouco importa quem esteja à frente. O relato é de uma mulher indígena, mãe, integrante da retomada e agredida pelos policiais.
“Levei duas balas (de borracha). Eu e a minha irmã. Vieram com tudo (duas viaturas da PM) para nos atropelar. Bom que a gente é ligeiro. Corre pra lá, pra cá e eles não acertaram a gente. Na verdade, não sei como escapei. Ainda não estou bem, minha cabeça tá toda embaraçada. Meu pensamento é que aconteceu agora. Não consigo comer nada”, desabafa.
A Guarani e Kaiowá tem elaborado mecanismos para deixar passar os sentimentos de tristeza. Um deles é projetar o futuro
Ela conta que os policiais os chamavam de “cachorro, merda, porra. Não respeitam mulher, criança, idoso”. A Guarani e Kaiowá tem elaborado mecanismos para deixar passar os sentimentos de tristeza. Um deles é projetar o futuro, vê-lo, dar cores e sensações a uma vida sonhada.
“Meu filho está com oito anos. Quero ver o meu filho crescer nesta terra, de repente meus netos. Posso levar bala de borracha, mas não saio do lado da minha comunidade”, conclui.
Um outro Guarani e Kaiowá também precisou correr e desviar de viaturas que tentaram atropelar os indígenas. “Quando a viatura veio, tentei desviar. Pulei, mas a viatura da PM pegou na minha perna. Se eles pegassem em cheio, não sei se eu estaria vivo. Vieram com raiva, sabe, não sei a razão”, lembra.

