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Uma questão filosófica essencial

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01/06/2018 14h06

Por: Folha de Dourados

(*) Cleiton Zóia Münchow

Canibais de nós mesmos devoramo-nos em nome de nossos senhores. Devoramo-nos uns aos outros, e cada um a si mesmo, deixando incólumes aos produtores das nossas misérias. Angelina poderia ter ameaçado a irmã de criação ou a esfaqueado, mas, quando de fome não mais aguentava, preferiu, com uma faca, decepar e comer o próprio dedo a voltar-se contra Bárbara que lhe negou qualquer parte no abundante alimento que possuía: um baú de víveres escapou ao acidente de avião que deixou as duas isoladas nos altiplanos da Bolívia, região sem qualquer fonte natural de alimento para um ser humano. Nos dias que se passaram, Angelina, orientada pela irmã, seguiu o processo de devorar-se a si mesma: comeu todos os dedos das mãos, depois os dos pés, as pernas, as coxas, e, no quinto dia, abriu o ventre, extraiu o fígado, não suportando a fome, devorou-o cru. O baço, os ovários, o útero, assim continuou até comer-se quase por inteiro e morrer. Os restos mortais da irmã que, em vida, tinha a pele escura, era esguia e de olhos assustados, levaram Bárbara -loira, alta e casada com um rico fazendeiro do mato grosso- a mentir pela primeira vez na vida, com a intenção de preservar a memória de Angelina, à equipe de resgate ela disse: foram os índios! No outro dia os jornais noticiaram a existência de índios antropófagos na Bolívia.

Angelina e Bárbara, personagens do contista Moacyr Scliar, nos colocam diretamente com o problema fundamental da filosofia política que, como bem observaram Deleuze e Guattari, o filósofo Espinosa bem soube colocar: “Por que os homens combatem pela sua servidão como se se tratasse de sua salvação?”. Angelina tinha uma faca na mão, mas não a utilizou contra a irmã de criação que lhe negava o alimento, preferiu decepar e comer o próprio dedo. Angelina não apresentava nenhuma ameaça à Bárbara que tranquilamente comia sozinha o conteúdo do baú. Recorrendo a Reich, Deleuze e Guattari nos dizem que o surpreendente “não é que uns roubem e outros façam greve, mas que os famintos não roubem sempre e que os explorados não façam greve sempre: por que os homens suportam a exploração há séculos, a humilhação, a escravidão, chegando ao ponto de querer isso não só para os outros, mas para si próprios?”. Como funciona essa servidão que levou Angelina, sem ao menos pensar na possibilidade de se valer da faca que tinha em mãos, se autofagir? Como acabamos por devorarmo-nos uns aos outros, e cada um a si mesmo, em nome de senhores que nos roubam a vida?

(*) É professor de filosofia no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFMS), mestre em filosofia moderna e contemporânea pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), licenciado em filosofia pela Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), pesquisador do grupo de pesquisa Educação Profissional, Inovação & Interdisciplinaridade (EDUPI) e do Rizoma: coletivo de experimentações indisciplinares, membro do Coletivo Arrasto. Atualmente participa do Coletivo da Parada LGBT+ e, junto ao coletivo, trabalha na organização da próxima PARADA DO ORGULHO LGBT+ INDEPENDENTE de DOURADOS-MS (https://www.facebook.com/events/2061648017450329/)

 Cleiton Zóia Münchow

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