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Todes, Sim Senhor!

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Eduardo Martins (*) –

Nosotros colonizados, somos tributários e herdeiros de tradições alienígenas; somos fruto de investidas agressivas e violentas contra as populações originárias. De longe veio o invasor e impôs à ferro e fogo (cruz e espada – também balas e cavalos) a sua “cultura”, por meio da sua língua, seu vernáculo e seus significados e significantes esdrúxulos, sem sentido nenhum para as populações que na América do Sul viviam em suas terras.

No caso da língua portuguesa, descende das matrizes linguísticas grega que por sua vez foi revitalizada na interação pelo Império/imperialismo de Roma, Estado agressivo em suas conquistas e espólios de guerra. A língua portuguesa advém do arcaico latim falado naquele império escravocrata, mas sobretudo machista (aqui sem cometer anacronismo – mas, revelando que a participação da mulher era quase anulada na vida política). Isso revela que essa língua seria falada exclusivamente no gênero masculino. Ainda que se postule que havia um terceiro gênero em latim, neutro – este se referindo a coisas inanimadas. Entretanto, com o andar da carruagem e do poder, talvez da Igreja Católica e sua visão/versão masculina de um Deus e das coisas da vida – o gênero masculino, acabou se tornado universal e universalista para se referirem às pessoas humanas – homens e mulheres, além das coisas inanimadas que passaram a ser referidas no masculino.

O Império romano inventou uma religião monoteísta (Catolicismo – Concílio de Niceia, 325 d. C.) essa instituição, para além das questões políticas, teve ampla influência em todo tipo de cultura durante toda a Idade Média e, em geral, nos seus mais de 2.500 anos de existência no Ocidente; fato esse que consolidou o latim arcaico como língua geral e obrigatória em toda a Europa conquistada e particularmente no Brasil, nosso caso, via invasão colonialista portuguesa.

O latim romano e, sobretudo, católico era essencialmente pensado e falado no gênero masculino; a Igreja Católica é somente masculina, desta feita inventou-se uma noção europeizante de que existe um Homem ontológico, universal e geral; mas, sobretudo, as referências às pessoas e às coisas deviam ser sempre no gênero masculino; algo que os filósofos modernos incorporaram em seus discursos; lembremos que o catolicismo é aristotélico daí a ideia geral da inferioridade feminina. Dito isto, pondero que hodiernamente a língua estática tributária da antiguidade não dá mais conta das novas subjetividades; mas sobretudo, dos novos direitos, direitos humanos de existir como todos, todas, todes, ou inventar novas palavras que não firam os ouvidos puristas dos guardiões do templo da sagrada língua romana.

Cabe citar o mestre e patrono da educação brasileira Paulo Freire “a leitura do mundo precede, a leitura da palavra”, para assim refletir que a vida social, para além do gramatiques, ou de teorias linguísticas – é fruto da vida cotidiana, da fala – mas sobretudo, filha do seu tempo – fruto dos direitos humanos conquistados palmo a palmo nos embates ideológicos. Desta feita ao conclamar o gênero neutro “todes”, é uma disputa de narrativa contra um tipo de elitismo burguês – ou contra os puristas da língua portuguesa que acreditam ingenuamente que a fala (o discurso) é livre de ideologia política; mas em outro aspecto é defender outras formas de narrativas advindas da vida social e conquistadas por direito arrancadas de um mundo em que se acredita que tenha lugar para pessoas de um terceiro gênero.

Todes, é mais do que uma palavra, é a reclamação veemente de que a temporalidade histórica exige a decolonialidade, o pós-colonialismo e o entre-fronteiras, o entre-lugar. É uma prática discursiva e, assim de acordo com Foucault, o discurso é prática e as práticas engendram seres sociais, ele disse isso, 1969 (As palavras e as coisas). Dessa maneira, o discurso “todes” é uma manifestação política e muito politizada à esquerda; no limite antifascista – dado que ele engendra pessoas que conquistam direitos humanos de existirem enquanto personalidades, e/ou subjetividades que não cabem nas caixas-padrões inventadas pelo patriarcado. Tampouco cabe no século XXI, que provoca esse tempo a se posicionar sobre o velho conceito de gênero – dualista, bíblico, estático e arcaico.

Se é verdade que a linguagem tem a função de nos fazer interagir com mundo – e mediatizado por ela – cito uma mulher Margarida Peter (2007, p.11)[i] “a matéria do pensamento e o veículo da comunicação social. A linguagem é relativamente autônoma; como expressão de emoções, ideias, propósitos, no entanto, ela é orientada pela visão de mundo, pelas injunções da realidade social, histórica e cultural de seu falante”. Essa reflexão se aproxima da freiriana de conhecimento e educação.

Ao se posicionar sobre o uso do gênero neutro diz a pesquisadora Graciela Chamorro (s/d) “De acordo com os registros quinhentistas, é possível que a palavra para abá (pessoa) pudesse ser usada para homens exclusivamente em alguns contextos, assim como podemos usar a palavra homem para falar de toda a humanidade em português. Para casos em que se deseja especificar, por exemplo, o sexo de um animal, usa-se kunhã para fêmeas e sakûãîba’e (lit. o que tem pênis) para machos. Continua sua fala “Também na língua japonesa “essa flexibilidade semelhante ao japonês, em que pronomes como 私, あたし, 僕, 俺 (eu) expressam gênero, intimidade e até maturidade. Partículas como わ, よ, ぜ, かしら e かな (impossível traduzir) também podem ser consideradas femininas, masculinas ou neutras. Aparentemente, a tendência no Japão é de que a linguagem se torne mais neutra”.[ii]

Chamorro assim conclui sua reflexão sobre o uso de uma determinada língua “Pronome neutro é importante. Proteja crianças trans e intersexo”. Concordando, assim com a minha análise e visão histórica e humana sobre a linguagem.

O grave problema da língua portuguesa imposta pelo invasor é que esse tipo gente e situação desconsiderou a humanidade das pessoas que aqui viviam e suas línguas; ao cometerem esse equívoco/crime perderam a oportunidade de ampliar visões de mundo e o conhecimento de diretos ancestrais sobre “gênero”, sobre a pessoa humana. Preferindo manter aquela visão estática cristã sexista de mundo medieval/inquisitorial.

Concluo, como o anarquista Oswald de Andrade “Tupi, or not tupi that is the question” dito em 1928 e cada dia mais atual contra o imperialismo, o colonialismo, o sexismo, mas, sobretudo, a favor da decolonialidade, leia-se, também gênero neutro.


[i] PETERS, Margarida. Introdução à linguística.5. ed. São Paulo: Contexto, 2007.

[ii] Fonte (https://tupiperiodico.tumblr.com/post/635514551815831552/acho-dif%C3%ADcil-dizer-se-o-tupi-%C3%A9-uma-l%C3%ADngua-sem/amp). Acesso em: 22 mar, 2024.

(*) Eduardo Martins, no dia 22 de março do ano 524 da invasão portuguesa contra os povos originários da América e a imposição violenta contra suas línguas de gênero neutro. O pronome da 3ª pessoa é sempre a’e, em tupi para qualquer número ou gênero.

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