Estampidos desencadeiam reações de fuga, autoagressão e angústia, em razão da sensibilidade auditiva
As viradas de ano mudaram para o casal Ermerson Cardoso, 44, e Ariana Araújo, 38, desde a chegada do pequeno Augusto, de 5 anos. O garoto foi diagnosticado com TEA (Transtorno do Espectro Autista) nível 2 não verbal. A condição neurológica provoca hipersensibilidade auditiva e faz da tradicional queima de fogos uma verdadeira aflição, tanto a quem encara o transtorno, quanto para a família que se vê de mãos atadas.
Para contornar o cenário adverso e garantir o bem-estar da criança, a família precisou adaptar a rotina das festividades, restringindo-se ao ambiente doméstico durante anos. Segundo Ariana Araújo, o protocolo de segurança envolvia um isolamento acústico improvisado para minimizar o impacto dos estampidos.
“A gente mantinha ele em casa, fechava toda a casa o máximo possível, ligava o ar-condicionado no escuro e colocava ruído branco”, detalha. Ela explica que o som estático, semelhante ao de uma televisão fora do ar, era reproduzido via celular, próximo ao travesseiro, enquanto os pais permaneciam “velando o sono dele”.
Apesar de o desenvolvimento de Augusto permitir, atualmente, breves saídas sociais, a mãe ressalta a poluição sonora urbana como um obstáculo constante.
“Aqui não tem muito o que fazer, não tem para onde fugir. Qualquer lugar vai ter som, vai ter som alto, fogos”, observa Ariana. Ainda assim, ela pontua que a evolução da idade trouxe melhorias na questão sensorial. “Esse ano, que ele tá maior, ele tá conseguindo resistir mais ao sono e a gente tá conseguindo sair pra alguns lugares”, completa.
O pai reforça que as medidas preventivas foram adotadas pela família antes mesmo da confirmação clínica do diagnóstico. A estratégia inicial combinava proteção física e mascaramento sonoro. “A gente tinha protetor auricular pequenininho, colocava, ele bebezinho, protegia as orelhas ali, colocava música do lado”, recorda. Ele explica que a preferência era por música clássica ou melódica para evitar que o barulho das explosões externas invadisse o quarto.
A douradense Jessica Cariaga Alves, 36 anos, é mãe da Cecília, 8, e do João, 6, ambos com TEA. Ela relata que a filha mais velha, suporte 1, gosta de fogos e usa abafador nos ouvidos para minimizar a sensibilidade. Já o pequeno João, que é suporte 3 não verbal, acaba lidando de maneira mais complexa aos estampidos e agitações da virada.
“Ano passado, estávamos casa de uma família amiga que teve cuidado de comprar fogos silenciosos, e as crianças se divertiram, mas antes da meia-noite vim embora com o caçula para, mesmo com abafador, ficarmos dentro de casa. Ele se agita muito e como a comorbidade dele é epilepsia temos receio de poder gerar crises”, relata.
Jéssica destaca que sonha com o dia em que a sociedade terá mais consciência dos efeitos dos fogos aqueles que enfrentam quadros de neurodivergência. “Fogos são lindos, mas existem opções mercado que causam tantos problemas, não só para nossas criancas autistas, mas animais, idosos, bebês. Então por aqui estamos com abafadores prontos e se tiver necessidade voltar embora casa e ficar no quarto mais silencioso possível”, afirma.
Em Ponta Porã, a vigia Mary Duarte de Freitas, 37, sabe que o filho Antony, de 5 anos, estará seguro de crises em razão dos medicamentos que toma para lidar com as consequência do transtorno. Ele é nível 3 de suporte e ainda não adquiriu a fala. Diariamente, o pequeno toma remédios que reduzem a agitação e proporcionam sono profundo.
“Ele toma remédio sete e meia da noite. Então é meia horinha e o remédio já tá fazendo efeito. Quando é 20h horas ele tá dormindo todos os dias. E ele dorme mesmo igual a pedra então não acaba se incomodando. E de manhã também ele toma uma medicação forte que faz efeito durante o dia todo. Essas medicações acabam fazendo com que ele não sofra tanto com os fogos, mas em algumas outras situações, essas bombinhas que a criançada solta, quando é perto dele, ele se assusta muito, ele chora”, relata a mãe.
Ela destaca também o efeito do barulho de motocicletas na quebra do bem-estar do garoto. “Eu acho que se ele não tomasse essas medicações, ele iria sofrer bastante, ia ficar muito agitado” com todos esses fogos”, pontua.
Para eles não é festa, é agressão
Todos esses efeitos do barulho nas pessoas com autismo tem explicação. “O coração dá uma descarga de adrenalina, acelera, a pressão sobe. Eles não conseguem entender que é uma festa. É como se estivessem no meio de um tiroteio. Algumas pessoas se desregulam até na hora de recreio na escola por causa do barulho”, explicou a neuropediatra Solange Vianna Dultra, à Agência Brasil.
Um estudo lançado em 2012 mostrou que entre as famílias consultadas no levantamento, entre 43% a 52% das crianças se sentem diante de uma situação de insegurança. Isso pode refletir em comportamentos adversos àqueles que são típicos das festas de virada.
“Mais de 40% das crianças sensíveis ao ruído tentaram fugir dos sons que as incomodavam, tentando se esconder. Isso corrobora com a justificativa que há um sofrimento destas crianças que se sentem indefesas a esses estímulos”, afirma artigo que analisa a pesquisa.
“Muitas vezes, isso se vai manifestar como ansiedade, irritabilidade, fora o prejuízo depois no sono que pode impactar até o dia seguinte”, destaca a neurologista Vanessa Rizélio, também à Agência Brasil. (Midiamax)


