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Coluna arTura: ‘A Última das Formigas’, por Rebecca Loise

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21/03/2017 09h50

A Última das Formigas

Por: Folha de Dourados

(*) (Rebecca Loise, 20.03.2017)

Atente ao tempo/ Não começa nem termina/ É nunca, é sempre

(Carta de Amor – Maria Bethânia e Paulo Cesar Pinheiro)

Compositor de destinos/ Tambor de todos os ritmos/ Tempo, tempo, tempo, tempo/ Nas rimas do meu estilo

(Oração ao tempo – Caetano Veloso)

You run and you run to catch up with the sun, but it’s sinking

(Time – Pink Floyd)

Para esta viagem de férias, eu havia me organizado: comprei todas as passagens com antecedência, pela internet.

Ida de Dourados a São Paulo – 7 de Janeiro de 2017.

Ida de São Paulo a Paraty – 8 de Janeiro de 2017.

Ida de Paraty a Pouso da Cajaíba – 8 de Janeiro de 2017.

Volta de Pouso da Cajaíba a Paraty – 12 de Janeiro de 2017.

Volta de Paraty a São Paulo – 12 de Janeiro de 2017.

Volta de São Paulo a Dourados – 15 de Janeiro de 2017.

Avistei a fisionomia do rosto do gerente da Motta, enquanto ele destacava as passagens, e logo já soube: esqueci a carteira de identidade para entrar no ônibus. Voltei à minha casa para buscá-la, confiante que daria tempo. Afinal, eu havia comprado as passagens com antecedência, pela internet. Chegando ao endereço da minha residência, procurei o documento. Achei que pudesse estar em cima de algum livro na estante, porque havia trocado de bolsa para sair para dançar na noite do último sábado, mas só encontrei o livro mesmo, que não era o que eu verdadeiramente procurava. Peguei a carteira profissional. Tem foto, número de identidade, número de CPF, por que não faria as vezes de carteira de identidade? Aliás, estou menos horrorosa na 3×4 da profissional do que na do RG. Melhor seria CNH, mas eu dei entrada na carta de motorista em janeiro do ano passado e eu ainda não marquei as aulas práticas. Tenho trabalhado muito. Até aqui, uma lição: aproveitar as promoções de início de ano pode sair caro a quem não se atém ao fato de que até entradas de CNH completam ciclos de aniversário. Não comemorei a ocasião que apagou meu saldo em vez de velinhas. Falando nisso, não comemorei também com o relógio ao retornar à rodoviária.

Chegando lá, notei o vazio deixado pelo ônibus que me levaria a São Paulo. Se tempo me faltou, a esperança é a de que a criatividade dê suas voltas ao redor do centro dos ponteiros sem limite de giros.

Para que o taxista acompanhasse o ônibus que já havia dado partida, foram R$ 20,00 até o ponto de referência da “Mão do Brás” (o motorista do ônibus fez um pit-stop forçado ali para que eu pudesse dar início a minha viagem de férias).

No táxi, notei que a minha mão esquerda segurava as chaves da minha casa, que deveriam ter ficado com a minha mãe, a encarregada pelos cuidados da minha gata Lóri enquanto eu saia de férias. Planejei tudo com antecedência, mas as chaves ficaram comigo. Paguei mais R$ 20,00 para que o taxista encontrasse a minha mãe estacionada em frente à floricultura da Av. Presidente Vargas, para lhe entregar as chaves em mãos. (Lóri, vai ficar tudo bem, a mamãe aqui pensou em tudo, com antecedência.)

Ufa, lá estava eu no ônibus para São Paulo, com previsão de chegada para 8h55 do horário paulista. Ganhar uma hora na travessia interestadual da geografia é o mínimo de lucro na matemática que os meus ponteiros não fecham. Ao descer em São Paulo, entraria na missão de trocar de rodoviária – da Barra Funda para Tietê – para pegar o ônibus de lá a Paraty/RJ, passagem já comprada, com antecedência, pela internet, com saída prevista para às 10h00 da plataforma.

Na ida para Sampa mon amour, na poltrona ao meu lado, estava sentada uma senhora que se chamava Lordes. Era para ser “Lourdes” com a letra “u”, assim como meu “Loise”, que deveria ser “Louise”, mas que acabou não sendo porque meu pai, no momento de registrar, não deu essa letra a mais. Se existe uma coisa que eu fiz com antecedência, antes mesmo de comprar as passagens com antecedência, pela internet, essa coisa com antecedência que eu fiz foi nascer. Prematura de 8 meses, com um pouquinho mais de 2 kg e meio. Não perguntei se Lordes não era Lourdes por algum motivo parecido. Mais adiante eu conto o que soube sobre Dona Lordes. Agora não dá tempo.

Como tudo pior pode ficar: meu ônibus de Dourados a SP chegou às 10h30 na rodoviária Barra Funda. E não no horário previsto e informado pelo site. Vai dar tudo certo, afinal, eu comprei as passagens com antecedência, pela internet.

No plano térreo da Rodoviária Barra Funda, eis que – face a face – me deparo com um relógio indecentemente enorme pendurado pelo teto de aço. A bomba relógio indicava 10h30 e mais alguns quebrados. Antes de me despedir da senhora Lourdes, ela me apresentou à filha dela com tanto orgulho que nem me disse como a herdeira se chamava, apenas bradou: “Essa é a minha filha”. Respondi que: “Parabéns, muito bonita a sua filha”. Um beijo, tchau, tudo de bom, Dona Lordes sem “u”. “Vai com Deus, minha filha” encerrou nosso momento de adeus.

Escada rolante. O tempo rolando. Metrô. Baldeação. Saudade dessa tecnologia que nos põe em velocidade embaixo da terra. Rodô Tietê, cheguei. Fui direto ao guichê da empresa “Reunidas”, a única que leva viajantes de SP a Paraty.

“Moço, tudo bem? Meu ônibus até SP atrasou e eu perdi a passagem das 10h00 para Paraty, qual o próximo horário?” Respondeu: “12h15”. Eu continuei: “Amém, e não é que Deus existe, vamos trocar a passagem”.
Foi então que ele me disse que não havia mais lugares no ônibus que iria sair no horário seguido ao que eu já havia perdido. Você pode até comprar a passagem pela internet com antecedência, mas nunca antecipe sua felicidade, tampouco se utilize do nome de Deus em vão.

Com antecedência marquei com Fabrício, capitão do barco Zeus que em alto mar me levaria de Paraty/RJ a Pouso da Cajaíba/RJ, de encontrá-lo um pouco depois das 17h30 no porto perto do Centro Histórico de Paraty. A marca 17h30 era a prevista para a chegada do ônibus de SP a Paraty, que já saiu às 10h00 e eu não consegui entrar para sentar na poltrona 8, que eu havia comprado e escolhido com antecedência, pela internet.

Eu precisava avisar Fabrício que eu não chegaria antes do por do sol, mas a bateria do meu celular está viciada e descarregou antes do tempo que provavelmente duraria se servisse como deveria, mesmo que eu a tenha carregado com antecedência.

“Moço”, eu disse para o rapazinho do guichê, “eu preciso entrar no ônibus das 12h15.” “Moça, sinto lhe dizer, o sistema está informando 0 (zero, z-e-r-o) lugares”, ele apontou a informação na tela do computador. No “tente outra vez”, eu disse: “Mas alguém pode perder o horário, como eu, e, por natureza do destino, sobrar um lugar: o meu”. Com ar de repetidor de informações burocráticas, o moço-funcionário esclareceu que mesmo que alguém perdesse o horário de saída do ônibus das 12h15, eu não poderia sentar no lugar vago sem que antes o perdedor do horário de ônibus chegasse até o balcão, com antecedência, para cancelar a passagem em ato. “Mas isto é raro acontecer”, completou o funcionário sem eu ter sinalizado a ele a vez da palavra. “Moço, você está fora do meu tempo”, pensei.

Fiquei plantada bem ali, na boca do guichê, esperando minha sorte desavisada dos ponteiros.

Plantei, enraizei, colhi mil e uma flores de lembranças nesta rodoviária da metrópole Sampa: nasci Rebequéia Desvairada, mas no interior do Mato Grosso do Sul.

Chegou a hora e a vez das 12h15. Eis que o relógio denunciava, mostrando-me a língua, que naquele exato instante um ônibus com direção a Paraty/RJ saia da plataforma com lugares vazios e meu saco cheio das incontáveis obsessões do sistema.

“Qual o próximo horário?”. “16h00, com 10 lugares disponíveis, poltronas que estão em cinza”. Mais uma oportunidade para eu me organizar com antecedência. “Essa aqui do corredor, moço, porque preciso ir sempre ao banheiro”. Dali para frente, aceitando a limitação de ser mortal, eu teria 3 horas e 45 minutos para sentir o preço do tempo passando. A cena de Fabrício me esperando no porto era filme em preto e branco na tela do meu cérebro. Pouso da Cajaíba mon amour, aguarde que eu chego já.

“São R$13,74 de multa.” “Mas, moço (eu apelo sempre para um vocativo), foi o ônibus de Dourados que atrasou. Era para ter chegado 8h55 e chegou 10h30, até eu pegar metrô pra trocar de rodoviária e estar aqui, onde estou, deu 11h e tantas.” “O sistema automaticamente gera esta multa quando a passagem não é alterada com 3 horas de antecedência ao horário da saída”. Eu gero meu lamento de pechincha automaticamente quando a injustiça da organização social se engrandece frente às minhas condições, digo, limitações existenciais. Respirei, peguei meu cartão para passar no débito. Para ganhar a luta de lavada, o moço disse que “o sistema só aceita pagamento em dinheiro”. Respirei, peguei uma nota de R$20,00 dentro do envelope que separei para “diversão”. Envelopes, para mim, costumam funcionar como um Excel para engenheiros que constroem foguetes da NASA – National Aeronautics and Space Administration –, ou seja, separar dinheiro em envelopes tem grande efeito de organização com antecedência para meu auto-coaching.

Estava sentada, vestida dos óculos de sol que comprei no dia anterior (para ser mais precisa, que comprei numa loja de departamento uma hora antes da saída do ônibus DOURADOS – SP, aflita que estava em seguir rumo à praia sem um novo par que me protegesse os olhos), estava distraída e suada nos bancos conjugados da rodoviária, esperando meu celular viciado carregar na torre de tomadas, quando uma moça desconhecida me escolheu – dentre tantos viajantes sentados nos banquinhos conjugados – para tirar uma foto dela. Ela não queria qualquer registro. Me explicou o ângulo, pegou o livro “Brasil: Nunca Mais” e fez que se concentrava na leitura. Click. “Obrigada”, ela exclamou, “ficou ótima”. Depois disso, conversamos sobre as expectativas de nossas viagens. Durante o papo, a lente esquerda dos meus óculos com menos de 24 horas de uso quebrou.
Aflição de seguir rumo à praia sem um par de óculos para me proteger os olhos! Antes me despedir da moça, trocamos os números de WhatsApps e até hoje o registro que fiz dela na rodoviária Barra Funda está como foto de perfil.

Meus óculos quebraram sem antecedência. Daquele saldo de 3 horas e 45 minutos entre o tropeço de perder uma passagem a outra comprada com multa, eu já estava na forca dos 20 minutos para 16h. Perguntei para a mocinha do pão de queijo se por ali eu encontraria uma banquinha que vendia óculos. Ela me apontou o quiosque da Chilli Beans. Lá fui eu, desesperada, correr contra o meu 7 x 1 pessoal. Juiz, eu preciso de uns minutinhos de acréscimo. Torçam por mim.

Escolhi um modelo de óculos meio esverdeado, dividi em 3x no cartão (poupei meu envelope “diversão”) e sai correndo quase sem tempo de pegar a notinha fiscal da garantia. Por ironia da geração desapego, não cheguei a ter a chance de precisar da garantia, perdi os óculos, como quem perde tempo, no terceiro dia de praia. Gooooool do avesso: as faturas nem chegaram e eu já não tinha posse da mercadoria. Pelo menos tirei algumas selfies vestida com eles.

16h02 na plataforma. Ufa, o ônibus ainda estava na jogada. Durante metade da viagem a Paraty, li contos de Clarice Lispector. Na outra metade, meditava de olhos abertos para liberar a ansiedade do trânsito das estradas em pleno verão e vapor.

Cheguei em Pouso da Cajaíba 23h e tantas. Mais atrasada que a última das formigas na fila das migalhas de pão.

Meu fiel marinheiro Fabrício me esperava no porto. Desatei a rir ao presenciar o grandioso mar e nunca mais parei até o fim das minhas errâncias nesta viagem. Encarno a própria sereia na dança de ondas de Iemanjá. De todo o azar mergulhado em culpa até aqui, por outro lado tive a sorte de ter uma imensa lua branca inteira, boiando na escuridão do céu sob as ondas do mar, como cartão postal da memória do início propriamente dito da minha trip. Uau!

Contar os quatro dias que vivi em Pouso da Cajaíba fica para outra ocasião, agora não tenho tempo. Meu relógio não domina a matemática do tempo.

Para pegar o ônibus em Paraty de volta a São Paulo, que eu havia comprado com antecedência pela internet, eu teria que estar na plataforma às 13h45. Adivinhe, se for capaz? Cheguei em Paraty, na malemolência do barco Zeus, quase 15h. Mais um ônibus perdido. Não tinha mais para aquele dia. Nem para o próximo. Comprei minha passagem de volta a São Paulo para o sábado, com acréscimo de multa de R$13,00 pela troca dos tickets, e ganhei mais dois dias de uma Paraty livre e turística só para mim.

A história da Dona Lordes sem “u” que eu prometi contar eu o farei quando der tempo, em outro susto dos ponteiros, porque estou escrevendo isso tudo aqui sentada no banco da rodoviária Barra Funda, enquanto aguardo o relógio bater 21h45, marca temporal do último ônibus que sai hoje para Dourados, que eu consegui remarcar depois de perder o que saiu às 18h30. Passagem que eu havia comprado com antecedência pela internet. A culpa foi ¼ minha, que atrasou na Livraria Cultura querendo carregar a distância física de Sampa no peso dos livros, outro ¼ da chave da casa da minha amiga, que emperrou na porta no ato de eu me despedir da hospedagem e buscar as malas, outro ¼ do taxista sem GPS que errou mais de quatro vezes o caminho do Bairro Pompeia à rodoviária, e ¼ de culpa, não podemos ignorar este fato inquestionável e perturbador, eu entrego à própria dimensão espacial do tempo, que me cospe para fora na maior frieza, condenando meu corpo fadado à decomposição na linha da vida.

“Aqui está o recibo da multa de R$39,60”, disse o funcionário sem piscar, pela troca da passagem do ônibus das 18h30, que eu comprei com antecedência pela internet, para o das 21h45, a minha décima terceira chance de Hércules. Se eu escrever mais uma palavra sequer vai dar 21h46 e eu posso vir a perder o ônibus da volta – eu quero voltar?

Queria escrever sobre o garoto que estou admirando, que eu dei o nome de Guardião do meu Celular. Ele está encostado na parede, colado a torre de tomadas que carrega os celulares na rodoviária. Algo me segredou que nele eu poderia confiar. Ah! Ainda tenho que desplugar o meu celular da tomada antes de ir para a plataforma 27 para pegar o ônibus que tatuou para sempre a minha angústia para às 21h45 desde domingo de retorno, e agora já estou atrasada. Mais atrasada que a última das formigas na fila das migalhas de pão. Será que dá temp

(*) Rebecca Loise é psicóloga e mestra em Psicologia, professora universitária e atua como psicanalista em consultório particular. Bailarina formada, escritora e poeta. Desde 2010 alimenta seu blog “De Sóis Noturnos” (www.rebeccaloise.blogspot.com). E-mail: [email protected]

Rebecca Loise

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