24/05/2017 14h31
Carta a um jovem poeta que não escreve
Por: Folha de Dourados
(*) Rebecca Loise
Solidões são colisões. Solidões são acidentes fatais no trânsito, na transição, na travessia, na transa das emoções que um corpo deve suportar e perde a mão no momento de sinalizar. A solidão tem o barulho enorme do silêncio.
Como você explicaria aquele segundo em que você adivinhou que a única coisa que acalmaria a paixão que explodia em meu peito era uma música do Pink Floyd no volume máximo do carro em velocidade? Do carro em velocidade que você dirigia com talento e segurança.
Como você explicaria o calor de conforto que sinto por ser conduzida pelas tuas mãos que preenchem a borda do volante e trocam a marcha da segunda para terceira como quem calcula o lance que desempataria um jogo?
Como você explicaria nossos olhos, tão perdidos, querendo se encontrar numa distância tumultuada de pessoas felizes quando tocou o verso “eu achei que nós chegamos tão perto”?
Como você explicaria o teu ímpeto de desviar a rota para o sentido da tua casa quando eu te respondi, tímida, “quem sabe em outro dia”?
Colidimos nossas solidões.
Tem pedaço de mim em tudo que é canto esquecido da casa. Eu não varro. E tem você na playlist do restaurante que eu almoço num sábado estrangeiro, nos entre-silêncios dos meus “Deslizes” (Fagner) “Exagerado”s (Cazuza).
Tem você no ímã da geladeira da casa da minha tia de consideração, que eu viajei para visitar neste fim de semana para te convidar para ir num show comigo na capital e que você. E que você? Por que o silêncio diante de meu convite? E que você não disse sim nem não. Silêncio. Tem você na estrofe “me gustas cuando callas porque estás como ausente,/ y me oyes desde lejos y me voz no te toca/ Parece que los ojos se te hubieran volado/ y parece que um beso te cerrara la boca” , (1*) do chileno Neruda. Tem você no instante em que eu entro numa Tabacaria e pergunto se o dono tem para vender tabaco orgânico – para te agradar. Tem você neste domingo em que eu caio numa dúvida dilacerante diante deste amor que você recusa sem dizer que não me quer.
Por quê?
Por que eu sei
que você me quer
enquanto você não quer
que eu disto saiba
porque também não acredita
neste saber que tem
sobre alguma espécie de amor
que sente por mim?
Também me perdi. Eu pergunto difícil porque, no fundo, não quero que saiba o que eu sinto. Quero que não entenda o que eu digo para que eu não atropele tua solidão. Mesmo que as nossas solidões se tenham colidido. E mesmo que elas próprias sejam colisões que se amedrontam com a ameaça de ter que pagar a alta multa do amor. Avante e desentendidos.
Tem você na lua cheia que paira borbulhante nos olhos do céu e que, ao me surpreender no silencioso cenário noturno, eu me lembro de te perguntar o horário de teu nascimento para jogar com teu mapa astral. Você não acredita, mas responde. E eu calculo nossa sinastria amorosa enquanto você dorme por longos dias e a lua brilha como quem engole a vela de qualquer amor romântico.
Agradeço teu silêncio que guarda as mil & uma fantasias que faz do meu suor perfume com sabor. Não esquecerei o beijo que dei no teu pescoço quente na última despedida, que celebrou exatamente um ano do antigo adeus.
Há um ano escrevi que era você “minha invenção de amor”. Passaram 365 dias daquela poesia, tive tua presença e hoje vivo o hiato firmado de nossa distância como nunca houvesse existido. Ainda quero os meus pertences que esqueci no chão, no criado-mudo, no móvel da tua casa em nossa primeira noite. O que fez do que sobrou de mim?
Não sei por que pergunto. O gato comeu sua língua. A tua tristeza comeu. A rotina comeu. O trabalho comeu. O vazio comeu. O tédio comeu. A gasolina que você gasta para atravessar a cidade comeu. Os caros potes herméticos que você comprou para guardar os temperos da tua cozinha comeram. A saudade que você tem do que não viveu comeu. O time que você joga basquete comeu. Tem um mundo dentro da tua barriga, teu peso e tamanho comprimem tuas costas e você está indigesto. Vou mastigando amor pelas tuas beiradas.
O estranho é que – você não me pega, você não me pega – o estranho é que tua língua não diz e eu te escuto em eco (e em silêncio). É lindo teu jeito de viver preocupado com o rumo das coisas. Você se veste de homem amargo quando, na verdade, até sabonete líquido cuidou de comprar para o banheiro de visita. Isto é doçura, meu bem.
Neste jogo em que você perde por W.O. (2*) e reclama de dor nas costas, você não me pega e eu não te engano. Você sabe que eu caibo toda tua no abraço do teu corpo e que a minha maior rebeldia é por querer o mínimo lucro da mais-valia do amor que me dou de graça.
Agora que a bola da palavra entrou na cesta, o placar volta a ser zero a zero. Zero é fim, início ou meio? Quero tua vitória, jovem poeta que não escreve, não diz, não responde. Entupo teu silêncio hermético com Led Zeppelin – I can´t quit you, Baby – e continuo inventando tua presença no corpo das minhas mil & uma fantasias. O que é amor, afinal, senão um acidente fatal de solidões colididas?
(1*) – Gosto quando te calas porque estás como ausente/ e me escutas de longe; minha voz não te toca. É como se tivessem esses teus olhos voado/ como se houvesse um beijo lacrado a tua boca.
(2*) – W.O. vem de Walkover, em inglês. O termo é atribuído à vitória de uma equipe ou competidor quando a uma equipe ou competidor adversário não comparece ao jogo.
(*) Rebecca Loise é psicóloga e mestra em Psicologia (PUC-SP), professora universitária (UNIGRAN) e atua como psicanalista em consultório particular. Bailarina formada, escritora, poeta e estudante de Artes Cênicas (UFGD). Desde 2010 alimenta seu blog “De Sóis Noturnos” (www.rebeccaloise.blogspot.com). E-mail: [email protected]