Desde 1968 - Ano 56

28.6 C
Dourados

Desde 1968 - Ano 57

InícioDouradosPluralismo jurídico no papel, etnocídio na prática: A realidade indígena no Sistema...

Pluralismo jurídico no papel, etnocídio na prática: A realidade indígena no Sistema de Justiça Brasileiro

Por:  Wilson Matos

A Constituição Federal de 1988 representou um marco ao prometer o respeito à “organização social, costumes, línguas, crenças e tradições” dos povos indígenas. Em teoria, o Brasil abraçava o pluralismo jurídico, reconhecendo que o direito estatal não é o único sistema de normas válido em seu território. Contudo, mais de três décadas depois, a prática nos tribunais revela um abismo entre a promessa e a realidade, configurando o que pode ser chamado de “pluralismo para inglês ver”.

Quando um conflito aparente de normas surge, a máscara do respeito cai, e a lógica monocultural do direito não indígena se impõe de forma violenta. Um exemplo claro é a criminalização de práticas culturais, como o casamento realizado após a primeira menarca da jovem.

Para muitas cosmovisões indígenas, não existem as categorias de pré-adolescente ou jovem; a transição da infância para a vida adulta é um marco social e espiritual. O que para uma comunidade é um rito de passagem legítimo, para o sistema de justiça brasileiro é, sem qualquer mediação cultural, tipificado como estupro de vulnerável.

Nesses momentos, a ferramenta que deveria servir como uma ponte entre esses dois mundos — o laudo antropológico — é frequentemente descartada. Sob o pretexto de que o indígena possui RG, CPF ou fala português, juízes e tribunais decretam seu “grau de integração”, dispensando a análise pericial. Essa prática é um fantasma do assimilacionismo do antigo Estatuto do Índio (Lei 6.001/73), uma lógica que a Constituição de 1988 buscou sepultar. Trata-se a identidade indígena não como um direito permanente, mas como uma condição a ser superada para alcançar uma suposta “cidadania plena”.

O laudo antropológico não é um medidor de civilidade. Sua função é ser um tradutor cultural, explicando ao operador do Direito que um ato pode ter outro significado e outra legitimidade dentro de um sistema jurídico próprio. Dispensá-lo com base em critérios superficiais é uma decisão que ignora a complexidade da identidade e nega ao indígena o direito de ser julgado com base em sua própria compreensão de mundo.

Essa sobreposição cultural se repete em outras esferas, como no direito penal. O Estatuto do Índio, uma lei especial, prevê o regime de semiliberdade como forma de cumprimento de pena, buscando compatibilizar a sanção com a organização social indígena.

No entanto, essa previsão é constantemente ignorada em favor das normas gerais do Código Penal e da Lei de Execução Penal (LEP). Em um conflito de normas, deveria prevalecer aquela que melhor protege os direitos humanos e a dignidade da pessoa, mas, na prática, a norma especial que protege o indígena é subjugada.

A raiz desse problema reside na profunda ignorância dos operadores do Direito, fruto do descaso das academias. Confunde-se Direito Indigenista (as leis do Estado sobre os indígenas) com Direito Indígena (os sistemas jurídicos próprios de cada povo). Sem essa distinção fundamental, o sistema judicial continua a operar como um instrumento de colonização.

A imposição de uma única visão de mundo, que criminaliza costumes e invalida sistemas jurídicos tradicionais sob o pretexto de uma falsa “integração”, não é apenas uma falha de interpretação. É uma ferramenta de dominação que, ao negar a validade da cultura do outro, promove um verdadeiro etnocídio por meio do direito. A promessa constitucional de 1988 só será cumprida quando o Judiciário se despir de sua arrogância monocultural e passar a praticar o pluralismo que a lei, por enquanto, apenas prega.

Essa imposição, que nega a validade dos usos, costumes e tradições garantidos pela Constituição, caracteriza, sim, uma forma de etnocídio. É a negação e a supressão sistemática da nossa cultura por meio do próprio sistema jurídico do Estado, que deveria protegê-la.

(*) É Indígena, Advogado Criminalista OABMS 10.689, especialista em Direito Constitucional, jornalista DRT 773MS e residente na Aldeia Jaguapiru – Dourados MS. [email protected]

- Publicidade -

ENQUETE

MAIS LIDAS