Eduardo Martins (professor adjunto IV, curso de História – UFMS, campus de Nova Andradina-MS)
“Apesar de você, amanhã há de ser outro dia” (Chico Buarque).
“Os povos indígenas no Brasil sofreram graves violações de seus direitos humanos no período entre 1946 e 1988. O que se apresenta neste capítulo é o resultado de casos documentados, uma pequena parcela do que se perpetrou contra os índios. Por eles, é possível apenas entrever a extensão real desses crimes, avaliar o quanto ainda não se sabe e a necessidade de se continuar as investigações”. (CNV, 2011, p.204).
O presente artigo se vale essencialmente do Relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV) instituído pelo governo da presidenta Dilma Rousseff (PT) em 13 de janeiro de 2010, grupo de trabalho com a finalidade de elaborar o anteprojeto de lei para a criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV). Aprovada pelo Congresso Nacional, a Lei nº 12.528 foi sancionada pela mesma presidenta na data de 18 de novembro de 2011.
Inicio esse texto com a fala do Ministro Rangel Reis, proferida em janeiro de 1976: “Os índios não podem impedir a passagem do progresso (…) dentro de 10 a 20 anos não haverá mais índios no Brasil”. E dessa forma expressando uma visão de conjunto operacional e institucional da elite política que comandou o país por meio de um golpe de Estado aplicado contra o governo democrático de João Goulart, no ano de 1964.
O citado documento (CNV) faz revelações como o Estado brasileiro agiu contra as populações indígenas em todo o território brasileiro: “União estabeleceu condições propícias ao esbulho de terras indígenas e se caracterizou majoritariamente (mas não exclusivamente) pela omissão, acobertando o poder local, interesses privados e deixando de fiscalizar a corrupção em seus quadros; no segundo período, o protagonismo da União nas graves violações de direitos dos índios fica patente, sem que omissões letais, particularmente na área de saúde e no controle da corrupção, deixem de existir” (CNV, Relatório 2, texto 5, p.204). Documento intitulado “Violações de direitos humanos dos povos indígenas”.
Ademais, todas essas violações contra os indígenas, notadamente para apropriação de suas terras, o Estado ditatorial conjuntamente com fazendeiros locais e apoio, conivência e participação da Funadação Nacional dos Indígenas (FUNAI) coloca em execução um projeto de remoção de algumas etnias.
Este é o caso do povo Ofaié que habitava ancestralmente o município de Brasilândia, no leste do Estado de Mato Grosso do Sul, região de Três Lagoas, fronteira com os Estados de São Paulo e Minas Gerais, que ali tinham se estabelecido mais recentemente em uma área chamada “aldeia Esperança”. Viviam num total de 24 pessoas em situação de penúria, fome, miséria e maus tratos. Localizados pelo repórter Luiz Carlos Lopes do Jornal O Estado de S. Paulo em 6 de agosto de 1976, que fez denúncia ‘“passados 20 anos, os ‘extintos’ Ofaié, rompem a lógica do silêncio, sendo apresentados à nação brasileira”’ (DUTRA, 2012, p.43). No entanto, as mortes continuavam, bem como os abusos dos não indígenas que invadiam sitematicamente suas terras e os exploravam.
Dentro desse processo de miserabilidade a Funai, órgão responsável pela tutela e cuidado dos indígenas, encontrava-se alinhada aos intereses de fazendeiros e famílias não indígenas, dessa feita, podemos assegurar que esse órgão, sob a direção da ditadura militar e segundo o Relatório da Comissão Nacional da Verdade trabalhava contra os indígenas. No ano de 1973, o Estado ditatorial publica o famigerado Estatuto do Índio (Lei nº 6.001/1973). “Vários dos seus artigos tornam legais, sob condições restritivas (que não serão respeitadas), práticas correntes e denunciadas desde a Serviço de Proteção aos Índios (SPI). O artigo 43 estabelece a “renda indígena”, legalizando assim a exploração de madeira e outras riquezas das áreas indígenas. Ostensivamente destinada aos índios na lei, a renda indígena acaba por ser fonte de 80% do orçamento da Funai” (CNV, texto 5, p.210). O Estatuto é prova fidedigna da visão e do tipo de política violenta praticada contra os povos indígenas durante a ditadura militar.
Após golpe militar (1964) e o regime etnocida por ele praticado, os povos indígenas passam ser considerados inimigos internos “eles passam a suspeitos, a virtuais inimigos internos, sob a alegação de serem influenciados por interesses estrangeiros ou simplesmente por seu território ter riquezas minerais, estar situado nas fronteiras ou se encontrar no caminho de algum projeto de desenvolvimento” (CNV, p.211). Diz Manuela Carneiro da Cunha que “em 1967, quando a Funai foi criada, estava subordinada ao Ministério do Interior, que defendia uma grande ocupação da Amazônia e não levava em consideração a presença indígena. Essa ocupação na década de 70 gerou um grande deslocamento de indígenas, e causou mortes na ordem de 8 mil pessoas. O Ministério tinha interesses contrários aos índios e a Funai ficou por bastante tempo subordinada a um Ministério com interesses conflitantes.” (CUNHA, 2019, n.p).
A partir do ano de 1970, “a Funai passa a ter não só uma assessoria influente de informação e segurança (ASI), com militares egressos de órgãos de informação, mas alguns de seus presidentes provêm diretamente de altos quadros desses serviços: o general Bandeira de Mello, por exemplo, antes de assumir a presidência da Funai, era Diretor da Divisão de Segurança e Informação do Ministério do Interior.” (CNV, p.211), “a questão indígena se torna assim, de forma patente, questão de segurança nacional” (ibidem.)
Os Ofaié, povo citado textualmente no Relatorio (CNV, p.216), “Os Ofaié, por sua vez, também foram transferidos para a reserva Kadiweu em 1978 e passaram oito anos ali, em meio às ameaças dos posseiros. Hoje, vivem na TI Ofaié-Xavante, em Brasilândia”.
A Funai mandou, no ano de 1977, um servidor, intermediar sua remoção forçada e provido de mentiras e desfaçates induziu as famílias Ofaié a deixarem suas terras e mandarem para a reserva dos Kadiwéu na serra do Bodoquena, alegando que ali onde viviam iriam todos morrer de fome. De fato a situação era de total abandono por parte dos governos Federal, Estadual e Municipal que tinham interesses nas terras por eles habitadas. Isso em decorrência das denúncias fetas pelo jornal Folha de S. Paulo. ‘“Há suspeitas de que o proprietário das terras estava em conluio com a Funai […] o que precipitou a transferência dos indígenas. A suspeita se confirma, pois ‘tão logo esta ocorreu, Arthur Hoffig, queimou as choças, derrubou a mata e revirou a terra, nem mesmo respeitando o antigo cemitério indígena’” (DUTRA, ibid., p.45).
Passados oito anos no exílio Kadiwéu os Ofaié finalmente conseguem se libertar com a ajuda do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), “no fim de novembro de 1986, nós desembarcamos na rodoviária de Brasilândia, a cidade que nós deixamos em 1978, lá na Bodoquena não era nosso lugar. Somente nas margens do rio Paraná – a maioria dos meus antepassados estão nessa região no município de Brasilândia. Ali nascemos e lá queremos viver” (DUTRA, 2012, p.59/60) fala do ex-cacique Seu Ataide Francisco Rodrigues (Xehitâ-ha). É justo e honesto mencionar a importância de Carlos Alberto dos Santos Dutra junto à luta e a conquista da fuga dos Ofaié da Bodoquena sendo possível, devido à sua atuação direta junto à Funai e ao povo Kadiwéu que tudo faziam para impedir ou dificultar seu trabalho de remoção dessa população.
Os Ofaié, considerados extintos, atualmente conta com uma população de cem pessoas (100) entre crianças, jovens, adultos e velhos; a língua está se revitalizando graças aos trabalhos exaustivos na Escola indígena da aldeia Anodi “I-Iniecheki” pelo ex-cacique e professor José de Souza (Kói), autor de diversos livros sobre seu povo, além de dicionários da língua Ofaié-português e Português-Ofaié.
Gráfico 1 – crescimento populacional Ofaié

Fonte: Elaboração própria a partir de dados do IBGE (2024).
Cabe ressaltar que desde o dia 1 de janeiro de 2023, o governo Lula oficializou a criação do Ministério dos Povos Indígenas, o primeiro na história da política nacional a ser dedicado exclusivamente às demandas indígenas. A pasta é comandada pela deputada federal eleita em 2022 Sônia Guajajara. Nascida e criada na Terra Indígena (TI) Arariboia, no Maranhão, a parlamentar é a primeira ministra indígena do Brasil.
Referências
Finalmente, em relação à aldeia Anodi de Brasilândia, parte de suas terras já foram demarcadas e outras se encontram em finalização de processo de demarcação, já tendo sido realizada as limitações com o marco e georeferenciamento. A aldeia terá aproxidamente dois mil hectares de extensão territorial Ofaié reconhecido, sendo 460 hectares demarcados como terra indígena, os demais em processo de conquista, retomada; já com o termo de posse, restando sua homologação, redundando num extenso território de aproximadamente dois mil hectares. Segundo relato via whatsapp (27 mar. 2024 08:55 – O autor preferiu manter o anonimato).
BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Mortos e desaparecidos políticos / Comissão Nacional da Verdade. Brasília: CNV, 2014. Disponível em: http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/. Acesso em 15 fev, 2024.
CUNHA, Manuela Carneiro da. Ministério da Agricultura não deve cuidar de terras indígenas. Jornal da USP, 2019. Disponível em: https://jornal.usp.br/atualidades/jorusp-no-ar-11-07-ministerio-da-agricultura-nao-deve-cuidar-de-terras-indigenas/. Acesso em 20 fev, 2024.
DUTRA, Carlos Albertos dos Santos. Ofaié, morte e vida de um povo. 2. ed. Brasilândia: Edições do autor, 2012.
MARTINS, Eduardo. OFAIÉ – Eu estou na estrada – Hägaté te tahfwa (Nova Andradina e Vale do Ivinhema). Campo Grande: Life, 2022.