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O vazio invisível: por que a história sem Filosofia perde o chão que a sustenta

Reinaldo de Mattos Corrêa (*) –

Uma universidade que ensina História sem ensinar Filosofia não forma historiadores; forma operadores de passado. A diferença não é retórica. O historiador, no sentido pleno, não é aquele que conhece fatos, períodos ou métodos de arquivo, mas aquele que compreende o estatuto do próprio conhecimento histórico: o que significa narrar o passado, a partir de onde se fala, sob quais pressupostos de verdade, causalidade e sentido. Quando a Filosofia está ausente do mesmo espaço institucional, essas perguntas não desaparecem — elas apenas deixam de ser formuladas conscientemente. E toda pergunta que não é pensada passa a agir como pressuposto oculto.

O primeiro prejuízo é, portanto, epistemológico. Sem Filosofia, a História passa a operar como se sua forma de conhecer fosse natural, neutra ou autoevidente. Conceitos como verdade, objetividade, causalidade, tempo, evidência e interpretação tornam-se ferramentas técnicas, não problemas conceituais. O estudante aprende como pesquisar, mas não por que esse modo de pesquisa é considerado legítimo. Assim, a História se converte em técnica sem fundamento, e toda técnica sem fundamento está sempre a um passo de se tornar ideologia — não por má intenção, mas por inconsciência estrutural.

O segundo prejuízo é ontológico. A História, sem Filosofia, perde a capacidade de interrogar a própria natureza do tempo que estuda. O tempo histórico passa a ser tratado como uma sucessão linear de eventos, períodos ou estruturas, quando, na verdade, ele é uma construção conceitual profundamente dependente de escolhas filosóficas implícitas. Sem o diálogo com a Filosofia, o historiador passa a confundir cronologia com temporalidade e sucessão com sentido. O passado vira um depósito de dados organizáveis, e não uma dimensão problemática da experiência humana. Isso empobrece radicalmente a compreensão do que é uma civilização, uma ruptura ou uma permanência.

O terceiro prejuízo é hermenêutico. Toda História é interpretação, mas nem toda interpretação sabe que o é. A Filosofia — especialmente a hermenêutica, a fenomenologia e a filosofia da linguagem — ensina que não existe acesso puro aos fatos, apenas mediações. Quando essa formação não existe no mesmo ambiente institucional, o historiador tende a absolutizar seus próprios enquadramentos interpretativos, acreditando que fala “a partir das fontes”, quando na verdade fala a partir de categorias não examinadas. O resultado não é objetividade, mas dogmatismo metodológico: a crença de que um método protege contra o erro, quando ele apenas o organiza.

O quarto prejuízo é crítico-político, embora raramente reconhecido como tal. Paradoxalmente, a ausência de Filosofia não torna a História mais neutra; torna-a mais vulnerável às ideologias dominantes. Sem treino sistemático na análise de conceitos, valores e pressupostos, o historiador passa a reproduzir narrativas morais e políticas do seu tempo acreditando estar apenas descrevendo processos históricos. A crítica, então, se reduz a escolher um lado “correto” do passado, em vez de interrogar as categorias que tornam essa escolha possível. A História sem Filosofia não questiona o poder — ela apenas o redistribui simbolicamente.

O quinto prejuízo é formativo. Uma universidade que oferece História sem Filosofia forma profissionais altamente informados e conceitualmente frágeis. O estudante aprende a escrever bem, citar corretamente, manejar fontes, mas não aprende a sustentar uma pergunta até o fim, a habitar a dúvida sem resolvê-la prematuramente, nem a distinguir entre problema real e falso problema. Ele se torna competente, mas não profundo; produtivo, mas não rigoroso no sentido forte do termo. A longo prazo, isso empobrece não apenas a academia, mas o debate público, pois a História passa a oferecer narrativas prontas onde deveria oferecer inteligência histórica.

Por fim, há um prejuízo civilizacional, o mais grave e o menos visível. A História sem Filosofia perde a capacidade de reconhecer seus próprios limites. Ela passa a acreditar que pode explicar o humano apenas pelo social, o econômico ou o político, esquecendo que essas dimensões só fazem sentido porque há uma experiência de consciência que as antecede. Sem Filosofia, a História esquece que o passado não é apenas aquilo que aconteceu, mas aquilo que continua operando silenciosamente no presente. E quando esse esquecimento se institucionaliza, a universidade deixa de ser um espaço de pensamento e se torna apenas um centro de gestão simbólica da memória.

Em síntese: não é a Filosofia que “completa” a História; é a Filosofia que impede a História de se absolutizar sem perceber.

Uma universidade que separa essas duas formações não está apenas dividindo departamentos. Está rompendo uma unidade cognitiva essencial: a unidade entre narrar o que foi e pensar o que significa narrar. Onde essa unidade se perde, a História continua existindo — mas já não sabe exatamente o que está fazendo. E quando uma disciplina deixa de saber o que faz, ela se torna perigosa não por excesso de poder, mas por falta de lucidez.

*Produtor Rural em Mato Grosso do Sul.

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