Reinaldo de Mattos Corrêa*
Por trás da retórica inflamável, dos atos de desinformação e do discurso “antissistema”, o bolsonarismo se ancora em um conjunto de crenças sociais que, embora frágeis quando confrontadas com a realidade, ainda mobilizam milhões de brasileiros. São como torres erguidas sobre areia movediça: quanto mais se tenta firmar os pés, mais fundo se afunda.
- O mito do “cidadão de bem”
A crença no “povo de bem” funciona como uma máscara dourada: brilha à distância, mas por dentro esconde rachaduras. Ao dividir o mundo entre bons e maus, absolve os pecados cometidos em nome do próprio grupo e condena ferozmente os do outro.
O subconsciente capta a mensagem: “se estou do lado certo, tudo me é permitido”. A pergunta que fica é: pode uma sociedade prosperar se sua moral depende apenas da camiseta que veste quem a pratica?
- O messianismo político
Bolsonaro é visto como mais do que homem: é tratado como salvador. Esse é um arquétipo antigo, que desperta no imaginário coletivo a figura do herói redentor. Mas o herói, quando se recusa a ser questionado, transforma-se em tirano.
Transferir ao mito a responsabilidade que deveria ser da cidadania é abdicar do próprio destino. O que é mais perigoso: um país sem líderes fortes ou um país que se ajoelha diante de um líder e esquece que a força maior deveria ser a do povo?
- O anti-institucionalismo seletivo
Essa crença é como um espelho quebrado: reflete apenas o que convém. O STF, o Congresso e a imprensa são legítimos apenas quando confirmam a narrativa; quando não confirmam, viram “inimigos da pátria”.
No inconsciente, isso gera um padrão infantil: aceitar a regra apenas quando se ganha o jogo. Mas democracia não é brincadeira de criança: é o acordo adulto de respeitar o árbitro mesmo quando o resultado nos contraria. Podemos chamar de liberdade um regime em que só vale a verdade que nos agrada?
- A nostalgia da ordem perdida
O bolsonarismo se alimenta da ideia de que houve um tempo dourado de ordem, segurança e prosperidade. Mas esse tempo é miragem no deserto. Nunca houve um Brasil sem violência, sem desigualdade, sem corrupção.
O que se confunde com “ordem” muitas vezes era apenas silêncio: pobres calados, mulheres invisíveis, negros reprimidos, divergentes perseguidos. O subconsciente se apega a essa memória idealizada como quem sonha com uma casa que nunca existiu. A questão é: não seria mais digno construir um lar verdadeiro, mesmo que imperfeito, do que se apegar a ruínas que só pareciam sólidas?
- O inimigo eterno
O “comunismo” é o fantasma que dá coesão a todas essas crenças. Um espantalho erguido para justificar medo permanente. No nível profundo, essa crença ativa o instinto tribal: precisamos de um inimigo para manter o grupo unido.
Mas viver em guerra contra fantasmas significa abandonar a luta contra os monstros de carne e osso: fome, miséria, desigualdade, desmatamento. O que destrói o Brasil não é uma ideologia inexistente, mas as correntes muito reais que mantêm milhões acorrentados à pobreza. Até quando permitiremos que sombras projetadas no muro nos distraiam dos grilhões que prendem nossos pés?
O abismo sob os pés
Todas essas crenças são abismos disfarçados de pontes. A do “cidadão de bem” legitima a hipocrisia. A do messianismo infantiliza a sociedade. A do anti-institucionalismo corrói a democracia. A da nostalgia mascara injustiças. E a do inimigo eterno aprisiona o país em uma guerra sem fim.
A pergunta final não é política, é existencial: queremos continuar caminhando sobre um chão de ilusões, ouvindo os ecos do abismo, ou teremos coragem de pisar no solo firme da realidade, construindo juntos um futuro que não precise de mitos para se sustentar?
*Produtor Rural em Mato Grosso do Sul.