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O marco temporal como backlash institucional: A violação do poder constituinte originário

Wilson Matos (*)

A aprovação da PEC 48/2023 pelo Senado Federal, em 9 de dezembro de 2025, às vésperas do julgamento no STF sobre a constitucionalidade da Lei 14.701/2023, representa muito mais que uma movimentação legislativa comum. Trata-se de um caso emblemático do que a literatura constitucional denomina backlash, ou efeito rebote: um contra-ataque político dirigido a decisões judiciais progressistas ou que contrariam interesses estabelecidos. No Brasil atual, esse contra-ataque tem um alvo explícito — a proteção constitucional dos povos indígenas — e um instrumento perigoso: a tentativa de reescrever a Constituição contra o próprio Poder Constituinte Originário.

O movimento legislativo em torno do marco temporal não é neutro. Ele nasce de um Congresso capturado por grupos radicalizados, profundamente alinhados a interesses anti-indígenas, anti-ambientais e economicamente predatórios. A maioria circunstancial que hoje domina o Parlamento não demonstra compromisso com a função nobre da casa legislativa nem com o ethos republicano. Pelo contrário: evidencia uma disposição constante de subverter garantias constitucionais para assegurar privilégios de elites fundiárias, mesmo que isso implique ferir princípios estruturantes da ordem constitucional.

A PEC 48/2023, de autoria do senador Dr. Hiran e relatada por Esperidião Amin, avança justamente no momento em que o STF inicia a análise de quatro ações que contestam a constitucionalidade do marco temporal fixado pela Lei 14.701/2023. Esse sincronismo revela a natureza estratégica do movimento: não se trata de legislar, mas de confrontar o Supremo, de afirmar que o Congresso pode — ou pretende — reverter uma decisão judicial por meio de uma alteração constitucional que, ao fim e ao cabo, viola cláusulas pétreas e os direitos fundamentais dos povos originários.

É importante compreender que esse conflito não é apenas jurídico; é institucional. O Congresso, que detém o Poder Constituinte Derivado, tenta se colocar acima do Poder Constituinte Originário ao propor mudanças que atingem o núcleo essencial de direitos indígenas. O Constituinte Originário de 1988 reconheceu que os direitos territoriais indígenas são originários, anteriores ao próprio Estado e independem de demarcação: não se constituem pela caneta da FUNAI nem pelo decreto presidencial, mas pela existência histórica e cultural dos povos que sempre habitaram aqueles espaços.

Assim, qualquer tentativa de reduzir o conteúdo desse direito — como faz o marco temporal — significa reduzir um direito fundamental e, portanto, violar cláusula pétrea (art. 60, §4º, IV). O Poder Constituinte Derivado não tem autorização para isso. Ele não pode contrariar, restringir ou esvaziar direitos e garantias fundamentais. Ao fazê-lo, perde sua legitimidade constitucional e realiza um ato materialmente inconstitucional, ainda que formalmente revestido de emenda.

Outro ponto essencial — e que demonstra a gravidade desse movimento — é o descumprimento histórico do art. 67 do ADCT, que determinou que todas as terras indígenas fossem demarcadas até 1993. Trata-se de um mandado constitucional, uma ordem imperativa emanada diretamente do Poder Constituinte Originário. O fato de o Estado ter descumprido essa ordem não extingue o direito indígena, porque o Estado não pode alegar sua própria torpeza para negar um direito fundamental. Em outras palavras: não se perde um direito territorial porque o governo se recusou a cumpri-lo. Muito menos se pode discutir a alteração do conteúdo desse direito antes de cumprir a determinação constitucional que está em aberto há mais de trinta anos.

Sua analogia é perfeita: mexer no direito indígena antes de cumprir o art. 67 é como discutir o mérito de um mandado judicial antes de cumpri-lo. O mandado judicial é a voz do juiz; o mandado constitucional é a voz do próprio povo, por meio do Poder Constituinte Originário. Desobedecê-lo não apenas afronta a Constituição; afronta o fundamento último de legitimidade do Estado Democrático de Direito.

Quando o Congresso tenta modificar o art. 231 para inserir uma limitação artificial — o marco temporal — está, na prática, tentando transformar um direito originário em um direito condicional e restritivo. Isso muda a própria natureza do instituto. Modificar essa essência não é simples alteração; é eliminação de direito fundamental. E isso o Constituinte Derivado não pode fazer.

O que vemos hoje, portanto, é um duplo retrocesso: jurídico e civilizatório. Juridicamente, porque se desrespeita a Constituição de 1988, sua história e sua lógica interna. Civilizatoriamente, porque se tenta negar a existência e a dignidade dos povos originários, substituindo-as por interesses econômicos imediatos.

A PEC 48/2023 insere o Brasil em uma espiral de insegurança jurídica e institucional. Ataca a harmonia dos poderes, afronta o Supremo Tribunal Federal e tenta reescrever a Constituição sem respeitar seus limites materiais. Mas, acima de tudo, agride os povos indígenas e a promessa constitucional de 1988: a de que o Estado brasileiro seria, pela primeira vez em sua história, capaz de reconhecer a justiça da dívida que tem com seus primeiros habitantes.

Resistir a essa tentativa não é apenas defender direitos indígenas; é defender a própria Constituição. É defender a democracia. É defender o país contra um retrocesso que tenta travar, por força de vingança política, o avanço civilizatório iniciado em 1988.

(*) É Indígena, Advogado Criminalista OABMS 10.689, especialista em Direito Constitucional, é Jornalista DRT 773MS. residente na Aldeia Jaguapiru – Dourados MS. [email protected]

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