Suzana Arakaki (*) –
Antecedentes do golpe
Nos anos 60 do século XX o mundo vivia uma grande tensão política historicamente conhecida como Guerra Fria. Naquele período, Estados Unidos da América (EUA) e a União das Repúblicas Socialistas Soviética (URSS), protagonizavam um conflito geopolítico. Capitalismo (EUA) e comunismo (URSS) empreenderam uma luta ideológica e bélica que quase culmina na Terceira Guerra Mundial.
A revolução cubana, ocorrida em 1959, acendeu o alerta para as Américas. Cuba era um país da América Central, totalmente dominado pelos EUA e sua saída da esfera de influência americana, desencadeou grande preocupação no bloco capitalista.
Desde a revolução cubana, os EUA agiram rapidamente para conter o avanço comunista nas Américas. Uma das situações mais tensas ocorridas entre os dois blocos foi a crise dos mísseis em 1962. URSS pretendia instalar uma base de mísseis soviéticos em Cuba, gerando o conflito que foi debelado diplomaticamente.
Essa tensão entre capitalistas e comunistas espalhou-se pelos países, influenciando o comportamento de suas populações, inclusive o Brasil que vivia um delicado momento político com a renúncia do presidente Jânio Quadros em agosto de 1961.
O vice-presidente eleito em eleições distintas, era João Goulart, ex Ministro do Trabalho no segundo mandato presidencial de Getúlio Vargas. Seu curto período como Ministro do Trabalho (1953/1954) lhe valeu a rejeição de setores militares e conservadores. Vargas e Goulart pertenciam ao Partido Trabalhista Brasileiro, o PTB, e com o partido no poder, prestigiaram a classe trabalhadora. Como ministro, João Goulart propôs aumento salarial de 100%, contrariando interesses dos setores empresariais. João Goulart renunciou ao cargo de ministro, mas Getúlio Vargas concedeu o aumento.
Com a renúncia de Jânio Quadros, seu vice João Goulart deveria assumir a presidência imediatamente, mas os ministros militares criaram resistência, instalando-se uma crise política. Várias manobras foram realizadas com intuito de impedir a posse de João Goulart. A solução foi um governo indireto. O parlamentarismo foi instituído após aprovação de uma emenda constitucional, articulada pelos contrários a João Goulart. Em setembro de 1961, João Goulart tomou posse. Experiência danosa, três gabinetes fracassaram e, em janeiro de 1963, após novo plebiscito, o país voltou ao sistema presidencialista.
João Goulart, restabelecido de seu papel de presidente, passa a trabalhar pela aprovação de seu projeto Reformas de Base, que previa mudanças em vários setores, entre elas a reforma bancária, reforma urbana e a reforma agrária. Nenhuma outra proposta foi tão combatida quanto ao da reforma agrária.
Foi no Rio de Janeiro que João Goulart realizou o fatídico comício pelas Reformas de Base, no dia 13 de março. Exortou a necessidade das reformas para trabalhadores, sindicalistas, militares de baixa patente e políticos aliados. Cerca de 150 mil pessoas presenciaram o comício pelas Reformas de Base. Neste comício, João Goulart lamentou o uso da fé cristã contra seu governo, referindo-se aos inúmeros movimentos femininos criados com apoio da Igreja Católica. O mais notório deles, o grupo Campanha da Mulher pela Democracia, a CAMDE, fundado em 1962.
O tumultuado governo de João Goulart passou a sofrer ataques de vários setores. João Goulart, articulado com seu gabinete militar, contava com apoio, acreditava ele, de um dispositivo militar e de um dispositivo sindical. O general Assis Brasil, chefe do gabinete militar de seu governo, assegurava-lhe apoio militar e os sindicatos, o apoio sindical.
A sociedade organizada passou à oposição ostensiva. Uma das mais significativas demonstrações de força e rejeição foram as “Marchas da família com Deus pela liberdade”, realizadas por grupos de mulheres em várias capitais do país. No dia 19 de março, na cidade de São Paulo, foi realizada a primeira marcha. Contou com público de cerca de 500 mil pessoas. No Rio de Janeiro, cerca de 600 mil pessoas. Sucederam-se vários atos de protesto por todo país. João Goulart não teve apoio do dispositivo militar e foi deposto em 31 de março de 1964. Tropas comandadas pelo general Olímpio Mourão partiram de Minas Gerais e, de Mato Grosso, tropas comandadas pelo general Meira Matos rumaram para a tomada de Brasília.
O golpe no sul de Mato Grosso
A cidade de Dourados foi um forte reduto eleitoral do Partido Trabalhista Brasileiro, partido do presidente Getúlio Vargas que implantou vários projetos colonizadores, visando interligar a região Centro Oeste aos grandes centros. A implantação das Colônias Agrícola Nacional de Dourados – CAND e Colônia Municipal de Dourados – CAMD (atual Itaporã), acolheu muitos colonos vindos de diversas partes do país. João Goulart esteve em Dourados para entrega de títulos de terra aos colonos.
Durante e após o golpe, assim como nas demais cidades, reproduziu os atos como comícios e passeatas. Até mesmo a campanha Ouro para o bem do Brasil, de arrecadação de fundos para a “revolução”, foi realizada.
Rivalidades políticas e pessoais transformaram os petebistas e colonos (beneficiados com a distribuição de terras), em principais vítimas do golpe. Parte da população que rejeitava João Goulart, atribuía a essas pessoas a pecha de comunistas.
Desde a posse de João Goulart grupos de oposição se organizaram, uma delas a Ação Democrática Mato-Grossense, a ADEMAT. Após o golpe, pessoas ligadas à ADEMAT passaram a perseguir pessoas ligadas ao PTB. Partidários e colonos foram presos, levados por civis às delegacias. Sobre a ADEMAT, em forma de versos, escreveu o deputado petebista Pedro Paulo de Souza:
A ADEMAT tornou-se
Um órgão coordenador
Agarrava dos comunistas
Com muito ódio e rancor
Tudo era esmagado
Pelo rolo compressor
Políticos foram duramente perseguidos. Dois vereadores petebistas tiveram seus mandatos sumariamente cassados em Dourados. Gumercindo Bianchi e Janary Carneiro Santiago sequer estavam presentes na sessão que os cassou.
Ainda em Dourados, o prefeito petebista Napoleão Francisco de Souza foi procurado pelo grupo de caçadores de comunistas que lhe exigiram o cargo. Napoleão rumou para Campo Grande e voltou escoltado por militares do Exército que lhe asseguraram permanência no cargo até o fim de seu mandato. Napoleão Francisco de Souza fez parte da Força Expedicionária Brasileira FEB e lutou na 2ª Guerra Mundial.
Nas demais cidades do estado como Campo Grande, as perseguições se repetiram contra petebistas, partidos tidos como de esquerda e trabalhadores das mais diversas áreas. Os sindicatos sofreram intervenções, sindicalistas foram presos e perseguidos. O clima de delações e vigilância constante levava temor e insegurança. Os professores eram vigiados em salas de aula. Vários prefeitos, deputados estaduais e vereadores foram cassados. Inquéritos Policiais Militares- IPMS instaurados em várias cidades.
O apoio ao governo militar também ocorreu na porção sul de Mato Grosso. Logo após o golpe foi realizada, em Campo Grande, a “Marcha da família com Deus pela liberdade” organizada pela Igreja Católica e Movimento Feminino em Defesa das Instituições Democráticas, articulados com a Associação dos Criadores do Sul de Mato Grosso. No estado, transformou-se em Marcha da Vitória. Houve grande adesão de pessoas de outras cidades. A figura do bispo diocesano de Campo Grande foi determinante para conclamar fiéis. Para ele, os fiéis representavam a Igreja que, com suas famílias, saíam às ruas para defender a liberdade, a vida familiar e cívica.
Solidariedade aos perseguidos:
Coube a um grupo de mulheres acolher e ajudar os perseguidos e seus familiares. Em Campo Grande, o Grupo Socorro Vermelho, dirigido por dona Lygia Neder, esposa do médico pecebista histórico Alberto Neder, preso após o golpe. Dona Lygia e outras mulheres auxiliavam as famílias dos trabalhadores presos. Mesmo após libertados, esses trabalhadores não conseguiam trabalho, pois ninguém queria se envolver com comunistas. Eram pessoas pobres, trabalhadores na construção civil, hotelaria, carroceiros, padeiros, que encontravam apoio e solidariedade no Grupo Socorro Vermelho.
Algumas considerações
A ditadura civil militar (1964 – 1985) marcou profundamente a população brasileira das mais diversas formas, até mesmo pelo desconhecimento. A censura instaurada durante o período fez com que a grande maioria não conheça hoje, o que de fato, aconteceu. Muitos se baseiam nas narrativas de seus pais e avós. A repressão contra a luta armada nos grandes centros fez com que o imaginário popular registrasse apenas os acontecimentos de perseguições, prisões, tortura e morte nos grandes centros. Mas em todo território nacional pessoas foram perseguidas, vigiadas, presas, perderam seus empregos, sofreram de alguma forma.
Os acontecimentos ora narrados foram objetos de extensas pesquisas realizadas por mim e vários outros pesquisadores, tendo como fontes os jornais do período, inquéritos militares, depoimentos, livros de memórias, documentos oficiais em arquivos públicos, atas de sessões legislativas, diários oficiais entre outras. Referem-se ao sul do estado de Mato Grosso anterior à divisão, ocorrida em 1977. Contudo, se nos grandes centros o tema foi amplamente pesquisado, no estado de Mato Grosso do Sul ainda há muito a pesquisar…
(*) Suzana Arakaki é professora universitária, com graduação, mestrado e doutorado em História pela Universidade Federal da Grande Dourados UFGD. Escreveu o livro Dourados: memórias e representações de 1964 (editora Uems, MS, 2008); participou das coletâneas Brasil 1964-1968: a ditadura já era ditadura (editora LCTE, SP, 2006); Utopia e repressão: 1968 no Brasil (editora Sagga,BA, 2018) e Mulheres na ditadura: agenciamentos de lutas e resistências (editora Milfontes ES, 2022).



