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O Espelho Quebrado: Psicopatologia Coletiva e o Fascínio pelo Abismo

Reinaldo de Mattos Corrêa*

A mente humana é um labirinto complexo, onde memórias, desejos reprimidos e medos ancestrais se entrelaçam. Quando milhões de mentes compartilham um trauma coletivo, um mito ou uma narrativa, algo mais perigoso emerge: uma psicopatologia da massa, um organismo mental que respira, alimenta-se e age com uma lógica própria, muitas vezes distorcida pela dor e pela necessidade de sentido.

O bolsonarismo, por exemplo, é um fenômeno de expressão sintomática de uma sociedade em crise de identidade e significado. Vejamos:

O Mito como Defesa Primitiva: Do Herói ao Messias

O mito bolsonarista – o herói combatente contra um sistema corrupto e maligno – não é mera retórica. É um mecanismo de defesa coletiva diante de um sentimento de impotência e humilhação. Na Psicanálise, quando o ego se sente ameaçado por forças externas percebidas como onipotentes e malévolas, ele recorre a figuras messiânicas. Esses heróis encarnam o desejo de redenção, prometendo restaurar a ordem perdida e punir os culpados.

Essa estrutura mitológica remete ao complexo de Édipo ampliado: a sociedade projeta os próprios conflitos internos (autoridade vs. rebeldia, ordem vs. caos) em figuras arquetípicas. Bolsonaro torna-se o “pai autoritário” que “dá ordem” num mundo caótico, ou o filho rebelde que derruba o pai corrupto. Ambas as projeções são produzidas para fugir da angústia da ambivalência e da responsabilidade individual.

A Realidade Paralela: O Delírio Coletivo e a Necessidade de Controle

A construção de realidades alternativas não é apenas manipulação. É o delírio coletivo emergindo. Em Psiquiatria, o delírio é uma crença falsa, firmemente mantida, contrária à evidência, que surge da necessidade de dar sentido a experiências traumáticas ou inexplicáveis. No caso do bolsonarismo, a realidade paralela é um escudo psíquico contra a ansiedade gerada por fatos incômodos: crises econômicas, pandemias, escândalos, devastações ambientais, golpe de Estado.

Essa realidade alternativa funciona como um sistema fechado de confirmação: qualquer informação que a contradiga é imediatamente rotulada como “fake news” ou parte de uma conspiração. Isso cria um efeito de câmara de eco onde as dúvidas individuais são suprimidas, fortalecendo a crença coletiva. É o equivalente psíquico a um paciente com esquizofrenia que, ao ouvir vozes, interpreta todos os ruídos ambientais como parte da perseguição.

O Abismo Interior: Narcisismo Coletivo e a Busca por Um “Outro” Perfeito

Por trás desses mitos e realidades paralelas jaz um narcisismo coletivo ferido. A sociedade brasileira, especialmente setores tradicionais, sente-se ameaçada na identidade cultural e nos valores. Bolsonaro oferece um refúgio narcísico: ele é o espelho que devolve uma imagem grandiosa, forte, inabalável. Quem o apoia não apenas apoia um líder, mas se identifica com uma versão idealizada de si mesmo – o “verdadeiro brasileiro”, o “cidadão de bem”.

Esse processo é perigoso porque transforma críticas em agressões diretas ao próprio eu. A um fanático: “Atacar Bolsonaro é atacar minha honra, meu valor, minha identidade”. É por isso que a polarização se torna tão visceral: não se discute ideias, mas se defende a integridade psíquica de um grupo.

A Teia do Imaginário: Vírus, Medo e a Necrofilia Social

A segunda referência menciona a “teia do imaginário”. Trata-se da materialização de fantasmas coletivos. O medo da pandemia, por exemplo, foi rapidamente canalizado para um “inimigo interno”: o lockdown, o “comunismo”, o “globalismo”. Esse processo é conhecido como projeção – atribuir aos outros (ou a grupos) os próprios impulsos agressivos e medos irracionais.

Assistimos a uma necrofilia simbólica: a morte (da democracia, da ciência, do outro) torna-se um objeto de fascínio e desejo. A negação da pandemia, o desprezo pelas vidas perdidas, a glorificação da violência – tudo isso são manifestações de um pulsão de morte coletiva, uma forma de auto-destruição disfarçada de defesa.

O Vazio Fundante: A Melancolia do Poder e o Luto Impossível

Há uma dimensão ainda mais profunda nesta dinâmica: o bolsonarismo revela uma sociedade incapaz de elaborar o luto das próprias contradições históricas. Freud nos ensinou que a melancolia surge quando o ego se identifica com o objeto perdido, recusando-se a abandoná-lo. O Brasil bolsonarista é um país melancólico que se recusa a enterrar o patriarcado violento, a escravidão simbólica, o autoritarismo paternalista – e projeta essa recusa na figura de um líder que encarna precisamente aquilo que deveria ser superado. O paradoxo é devastador: quanto mais o movimento se apresenta como “renovação” e “mudança”, mais explicita a natureza regressiva e necrófila. Bolsonaro torna-se, assim, não o curador da ferida nacional, mas o próprio sintoma da nação que escolheu a repetição compulsiva do trauma ao invés da elaboração criativa do conflito. É o retorno do recalcado na forma mais brutal: a sociedade que, ao tentar negar sua sombra histórica, acaba por materializá-la em carne e osso, transformando o inconsciente coletivo em espetáculo político. A verdadeira “cura” exigiria coragem para enfrentar esse vazio fundante – reconhecer que por trás da máscara messiânica há apenas o eco oco de uma civilização que ainda não aprendeu a se despedir dos próprios fantasmas.

Conclusão: O Diagnóstico Inadiável

Este mapeamento das estruturas psíquicas do bolsonarismo não é exercício acadêmico, mas diagnóstico de emergência civilizacional. Quando uma sociedade desenvolve anticorpos contra a própria realidade, quando transforma a morte em espetáculo e a mentira em verdade sagrada, não estamos diante de mera “diferença política” – estamos testemunhando a materialização de um processo autoimune coletivo que ameaça destruir o próprio organismo social.

A Psicanálise nos ensina que não há cura sem confronto com o real. O bolsonarismo é o real brasileiro em sua nudez mais crua: a recusa histórica em elaborar nossos traumas fundantes, a incapacidade de renunciar aos objetos perdidos da dominação patriarcal e autoritária, a compulsão à repetição de padrões destrutivos travestidos de renovação. Reconhecer isso não é “demonizar” – é nomear aquilo que se recusa a ser nomeado.

Não há diálogo possível com o delírio estruturado, não há ponte sobre o abismo da psicose coletiva. O que existe é a necessidade urgente de fortalecer as instituições democráticas como barreiras de contenção, de promover processos educativos que desenvolvam imunidade epistêmica contra realidades paralelas, e de criar espaços de elaboração coletiva onde a sociedade possa finalmente enterrar os mortos simbólicos.

O espelho se quebrou. E nos cacos despedaçados, vemos não apenas a face deformada do presente, mas o reflexo assombrado de tudo aquilo que o Brasil ainda não teve coragem de superar. A escolha que nos resta é clara: ou aprendemos a viver sem o espelho da ilusão narcísica, ou continuaremos cortando-nos nos fragmentos até que não reste nada além de sangue e sombra.

O abismo nos contempla. Cabe-nos decidir se queremos contemplá-lo de volta ou se ainda temos forças para desviar o olhar e construir algo novo sobre as ruínas deste espetáculo melancólico.

*Produtor Rural em Mato Grosso do Sul.

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