LIVRO REPORTAGEM – 15/10/2011
Adriana Carranca
Prefácio de O Afeganistão depois do Talibã, de Adriana Carranca, 288 pp., Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2011; título original: “11 de setembro de 2001”; intertítulos do OI
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Às 8h46 do dia 11 de setembro de 2001, no momento em que o avião que fazia o voo número 11 da American Airlines colidiu com a Torre Norte do World Trade Center, em Nova York, Fatema, mulá Abdul, marechal Fahim, Massouda, Wahida, Alberto, Ajmal, Miguel, Sayed, Shah e Sadaf não imaginavam que aquele acontecimento afetaria diretamente suas vidas em uma terra distante (mais precisamente a 10.864 quilômetros da ilha de Manhattan).
Dezessete minutos depois do primeiro choque, exatamente às 9h03, um segundo avião – o voo 175 da United Airlines – mergulhou na Torre Sul do World Trade Center, afastando de uma vez a hipótese de acidente aéreo. Um terceiro atingiu o Pentágono, na Virgínia, às 9h37, e um quarto avião comercial caiu em um terreno vazio próximo de Shanksville, na Pensilvânia, às 10h03. Os passageiros teriam tentado, sem sucesso, retomar o controle da aeronave desviada pelos sequestradores para Washington D.C., não é certo se com a intenção de atingir o Capitólio, onde fica o Congresso americano, ou a Casa Branca, residência oficial do presidente dos Estados Unidos.
A América estava sob ataque.
A imagem daquela típica manhã de outono nova-iorquina, de céu azul agora encoberto de fumaça, poeira e terror, seria exibida pelas emissoras de todo o mundo repetidamente. Os mortos ainda não tinham sido contados – 2.959 pessoas de 70 países e os 19 terroristas suicidas, saberíamos mais tarde – quando os olhos amedrontados do mundo e os dedos em riste das nações ocidentais começaram a apontar para um país da Ásia Central por onde Alexandre, o Grande, abrira caminho com seus soldados e elefantes rumo à Índia, no ano 334 a.C., para criar o maior e mais poderoso Império de então; não sem antes conquistar a bela Roxana (estrela iluminada, em persa), filha de um aristocrata de Bactros [atual província de Balkh], no coração da antiga Pérsia.
Terra de inconquistáveis
Nos mapas atuais da região compreendida entre a imponente cordilheira Hindu Kush, que percorre as fronteiras sul e leste, o rio Amu Daria [rio Oxo ou Oxus, em latim, como era chamado na Antiguidade], ao norte, e os desertos arianos, a oeste, lê-se: Afeganistão.
As fundações desse Estado como conhecemos hoje foram definidas no Império Durrani – ou Império Afegão -, erguido sem intervenção estrangeira por uma confederação de tribos pachto [os pachtos são o maior grupo étnico da região, com mais de 350 tribos, e predominam no Afeganistão – 42% dos 30 milhões de afegãos são pachto. No vizinho Paquistão, eles representam pelo menos 15% da população de 175 milhões. Estão presentes também na Índia e no Irã e, em menor escala, na Península Arábica, na Europa e América do Norte. Seus ancestrais podem ser traçados até dois milênios antes de Cristo. Eles dominam o Afeganistão desde o Império Durrani – o atual presidente, Hamid Karzai, é um legítimo pachto da tribo Polpozai, subclã dos Durranis], mais tarde conhecida como a dinastia Durrani, liderada pelo comandante militar Ahmad Shah Durrani em 1747 e que se tornou a maior dominação muçulmana da história ao lado do Império Otomano. Os afegãos se referem a ele como “o baba” (o pai).
Cercado pelos conturbados vizinhos Irã e Paquistão, pelos países da antiga União Soviética Turcomenistão e Tadjiquistão e pela gigante China, o Afeganistão encerra uma longa história de batalhas, suas terras manchadas pelo sangue dos muitos conquistadores que tentaram, sem sucesso, dominar seu povo. Divididos em tribos, mas profundamente ligados por valores ancestrais, os bravos afegãos têm se provado capazes de defender seu território e suas tradições com uma força invencível ao longo dos séculos e até hoje. É uma terra de inconquistáveis.
O 17º de 54 filhos
Xerxes, o Deus-rei, expandiu o Império Persa até as montanhas de Hindu Kush; Alexandre, o Grande, Gengis Khan e muitos outros conquistadores deixaram marcas profundas em território afegão. Reis ascenderam ao trono para em seguida ser depostos. Os indo-gregos propagaram o budismo, ergueram suntuosos monastérios e as grandiosas estátuas dos Budas de Bamyian. A invasão árabe deixou o Islã como herança. O Império Britânico e o Império Russo protagonizaram ali O Grande Jogo, cabo de guerra entre as duas potências pela supremacia na região, no século 19. E, mais uma vez, com a disputa entre a União Soviética e o bloco Ocidental durante a Guerra Fria. Mas o Afeganistão nunca se deixou colonizar. As tribos que compõem esse caleidoscópio de etnias da Ásia Central continuam vivendo basicamente como há milênios.
É nesse solo que os Estados Unidos travam a mais longa guerra de sua história recente – mais duradoura do que as duas Guerras Mundiais somadas e a Guerra do Vietnã. A magnitude inquestionável dos atentados de 11 de setembro, sem precedentes no número de vítimas [os atentados de 11 de setembro deixaram sete vezes mais mortos do que qualquer ação terrorista registrada no passado] e na ousadia dos terroristas, deixara claro que não se tratava apenas de mais um incidente no perigoso jogo das relações internacionais, mas de algo maior: uma ameaça latente para a qual o mundo não havia se preparado e da qual nem a mais rica e poderosa das nações estava protegida.
A guerra contra o terror foi deflagrada. O saudita Osama bin Laden, líder da organização terrorista Al-Qaida, foi apontado como principal suspeito de ordenar os ataques às Torres Gêmeas. E ele estava escondido no Afeganistão.
Osama bin Mohammed bin Awad bin Laden nasceu e cresceu em Riad, na Arábia Saudita, sob forte influência do wahabismo, a mais conservadora linha do Islã, que defende o retorno das sociedades ao estilo de vida dos tempos do profeta Maomé. Seu pai foi um pobre imigrante iemenita que conquistou um império pessoal ao construir palácios e mesquitas para a monarquia. Reergueu a mesquita de Al-Aqsa, em Jerusalém, incendiada por um turista australiano cristão em 1969; restaurou monumentos em Meca e Medina [aAl-Aqsa, em Jerusalém, Meca e Medina são os três locais considerados sagrados pelo Islã] e se tornou o homem mais rico e poderoso da Arábia Saudita depois do rei. A família de muçulmanos devotos vivia cercada de peregrinos, clérigos, líderes religiosos e políticos em sua casa. O pai morreu em um acidente de avião em 1967, quando Bin Laden tinha apenas 10 anos. Ele era o 17º de 54 filhos. E o único que não estudou no exterior. A mãe, síria, era apontada por pessoas próximas da família como a escrava do patriarca. O casal se separou logo após o nascimento de Osama; ela se casou novamente e teve outros quatro filhos.
Emirado Islâmico do Afeganistão
Aos 17 anos, Bin Laden casou-se com uma prima e ingressou na Universidade King Abdulaziz, em Jeddah, onde teria se envolvido com integrantes da Irmandade Muçulmana, sendo especialmente influenciado por um acadêmico teólogo chamado Abdullah Azzam, palestino que defendia a jihad [otermo jihad, que significa luta, foi usado pelo profeta Maomé para se referir à “guerra sagrada”, o esforço para propagar o Islã e converter novos fiéis.]como responsabilidade de todos os muçulmanos. O objetivo seria reconquistar terras das mãos de “infiéis” (não muçulmanos) e fundar um Império islâmico. Ele teria convencido Bin Laden e muitos outros soldados árabes a engajar-se na jihad contra os laicos comunistas soviéticos em 1979 no Afeganistão.
Bin Laden tinha apenas 22 anos.
O saudita desembarcou no vizinho Paquistão com a missão de financiar, inspirar e treinar, em sintonia com os serviços de inteligência paquistanês (ISI) e americano (CIA), milícias afegãs, tornando-se um dos homens de confiança dos Estados Unidos na região.
Com a saída dos russos, uma década mais tarde, o Ocidente perdeu o interesse pelo Afeganistão. Armados até os dentes, os sete comandantes das forças de resistência anti-soviéticas, divididos em etnias, se voltaram uns contra os outros, e o país mergulhou em uma sangrenta guerra civil – as marcas dos tiros de kalashnikov e os escombros resultantes dos bombardeios ainda são visíveis na capital, Cabul.
A violência dos conflitos, o caos, as atrocidades cometidas pelos milicianos e senhores da guerra – como estupros e chacinas – criaram o ambiente propício para a ascensão dos talibãs (estudantes, em árabe). Filhos de refugiados do regime soviético, criados e treinados para a jihad nas madrassas (escolas religiosas) do Paquistão, eles preencheram rapidamente o vácuo deixado no governo central com a promessa de restabelecer a ordem e garantir a segurança da população. Apoiados pelo povo, os então desconhecidos talibãs assumiram o controle do país em 1996, instaurando o Emirado Islâmico do Afeganistão.
Inimigo número um da América
Era sob a bênção e a proteção de seus homens que se acreditava estar Bin Laden.
A vitória sobre os soviéticos, em 1989, foi para Bin Laden uma afirmação do poder do Islã. Ele assumiu para si a missão do próprio profeta Maomé, que comandara exércitos muçulmanos do Norte da África ao Oriente Médio. Acreditava ser o emir, o califa que restabeleceria o Império islâmico em todo o globo a partir do Afeganistão.
Bin Laden migrou para o Sudão, onde fundou oficialmente a Al-Qaida (A Base, em árabe), começou a recrutar milicianos para o grupo e estabeleceu campos de treinamento para a jihad global.
A invasão do Kuwait pelo Iraque, que detonou a primeira Guerra do Golfo, em agosto de 1990, alimentaria os planos de Bin Laden. As forças de coalizão lideradas pelos Estados Unidos e pela Grã-Bretanha contra as tropas iraquianas estabeleceram bases na Arábia Saudita, o que teria enfurecido o saudita. A simples ideia de haver “infiéis” em terras sagradas foi percebida por Bin Laden como um ato de traição da monarquia. A presença de não muçulmanos em terras islâmicas passou a ser o foco da Al-Qaida; os antigos desafetos Estados Unidos e Grã-Bretanha tornaram-se alvos naturais do terrorista, além de Israel, em disputa pelos territórios palestinos.
Ao tentar recriar o Império muçulmano do século 12, Bin Laden redefiniu o terrorismo no século 21 e abalou os alicerces das mais poderosas nações. Ele reuniu grupos militantes do Egito à Chechênia, do Iêmen às Filipinas. Sob a bandeira da Al-Qaida, terroristas orquestraram o primeiro atentado contra as torres gêmeas do World Trade Center, em 1993, e bombardearam o complexo militar Khobar Towers, na Arábia Saudita, em 1996, entre outros atentados menores. Em uma declaração divulgada em 1998, o terrorista convocava muçulmanos a “matar americanos onde quer que eles estejam”, e após o bombardeio das embaixadas dos Estados Unidos no leste da África, em agosto daquele ano, o então presidente americano Bill Clinton declarou Bin Laden inimigo número um da América.
Solo fértil para o terrorismo
Expulso do Sudão, brigado com a família real saudita e caçado no Ocidente, o terrorista buscou refúgio no Afeganistão, onde seria recebido pelo líder do Talibã, mulá Omar – os milicianos acreditavam ter uma dívida de gratidão com o saudita, que os ajudara a chegar ao poder. Bin Laden permaneceria no Afeganistão até 2001.
No dia 7 de outubro daquele ano, 26 dias depois do 11 de Setembro, tropas americanas e britânicas invadiram o Afeganistão. O objetivo era encontrar Osama bin Laden e acabar com as bases usadas pela Al-Qaeda no país para recrutar e treinar terroristas. Os Estados Unidos também prometeram depor o Talibã e construir um novo Estado democrático afegão. No entanto, assim como o 11 de setembro não foi apenas um atentado, a guerra no Afeganistão não seria mais uma campanha militar, mas um longo e difícil jogo político no complexo tabuleiro das relações internacionais.
O então presidente George W. Bush convocou as nações a se unir ou enfrentar o mesmo destino dos terroristas. “Ou vocês estão conosco [os Estados Unidos e aliados] ou estão contra nós”, declarou ao anunciar seu plano de combate ao terror, espelhando-se no próprio Bin Laden, que já havia dividido a humanidade entre muçulmanos e infiéis. As consequências do pensamento fundamentalista, de ambos os lados do conflito, seriam sentidas em todo o mundo.
Em minha primeira viagem ao Afeganistão, fui incumbida da missão de produzir uma reportagem especial sobre o que parecia configurar-se o maior desafio do então recém-eleito presidente dos Estados Unidos, o democrata Barack Obama. Negligenciado pelo antecessor, George W. Bush, em prol do Iraque, o Afeganistão se tornara solo fértil para o florescimento do terrorismo. Enquanto o governo americano se ocupava do ditador iraquiano Saddam Hussein, os jihadistas tiveram tempo de se reorganizar, recrutar e treinar novos militantes, infiltrados nas montanhas da imponente Hindu Kush.
Em busca de dois passaportes
Quando desembarquei em Cabul, em novembro de 2008, a insurgência havia se restabelecido e o Talibã já dominava 72% do território afegão.1 O presidente Hamid Karzai sobrevivera por pouco a uma tentativa de assassinato, planejada pelos milicianos durante um desfile militar em comemoração ao aniversário da vitória sobre os soviéticos. Havia setenta pessoas sequestradas, entre as quais um repórter do New York Times. O Hotel Serena, um cinco estrelas em meio à guerra, residência de delegações oficiais estrangeiras em Cabul, fora atacado por homens-bomba, assim como o Ministério da Cultura. Dois funcionários da empresa americana DHL e, dias depois, uma missionária britânica haviam sido assassinados por atiradores, em plena luz do dia, em ruas movimentadas da capital – era a trigésima agente humanitária morta naquele ano e ainda não se sabia se os ataques eram uma caça deliberada dos insurgentes aos estrangeiros no país. Como um semáforo quebrado o alerta de segurança do comando da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), havia semanas não saía do vermelho.
Era a primeira vez que eu embarcava para uma zona de conflito. E eu estava morrendo de medo. Tanto medo que, depois de quase 14 anos desde a morte abrupta do meu pai, voltei a falar com Deus.
“Deus, eu sei que o Senhor deve ter questões mais urgentes a tratar, mas o assunto é importante. Estou a caminho do Afeganistão.”
Silêncio.
“Deus, eu sei que o senhor deve estar aborrecido comigo. Mas eu preciso de um sinal. Se não devo fazer essa viagem, Deus, por favor, me dê um sinal.”
Durante cinco horas eu chorei sem parar naquele aeroporto. Meu rosto estava encharcado, vermelho, inchado, meu cabelo desgrenhado, meus ombros caídos, os braços pesados. Eu era um zumbi naquele saguão constrangedoramente iluminado. Vendo meu desespero, a senhora da limpeza me pegou pela mão e percorreu comigo o aeroporto, de lata em lata, revirando o lixo em busca dos meus dois passaportes, o brasileiro e o europeu – o último, com o visto da Índia que eu fora buscar em Portugal. A Índia era, então, o caminho mais confiável para chegar ao Afeganistão.
No meio do caminho
Em Londres, onde eu fazia um curso de jornalismo internacional da Reuters, o visto da Índia só sairia em dois meses, e eu não dispunha desse tempo. Como tenho cidadania portuguesa, poderia consegui-lo mais rápido em Portugal. Foi o que fiz. O voo atrasou, era sexta-feira, e eu passei a tarde inteira sentada no meio-fio da calçada em frente à embaixada da Índia, com a mala como apoio, rezando. Vez ou outra eu implorava ao vigia que pedisse a alguém lá dentro para me atender. “Não tenho para onde ir”, eu apelava. No fim do dia, ele cedeu.
Foi no check-in da TAP que dei por falta dos passaportes. Segundos antes eles estavam na pasta que eu levava embaixo do braço, que agora também sumira. Eu tinha despachado uma das malas quando a balconista exigiu que a segunda bagagem tivesse um cadeado. Quem sabe tinha colocado na mala despachada, por distração? Tive de esperar quase uma hora para que tirassem a mala do avião, apenas para descobrir que os documentos não estavam lá. Na sala do delegado português, o noticiário televisivo mostrava um novo ataque suicida em solo afegão – 14 mortos. “Vês? Isso há de ser um sinal, que é para a senhora não ir! Estou lhe avisando, ô menina!” Eu queria avançar no pescoço dele.
“Deus, o Senhor podia ter arrumado um sinal mais claro! Por que não impediu que me dessem o visto? Por que está fazendo isso comigo!? Pois agora eu vou! Eu vou, sim! Vou de qualquer jeito! Nem que tenha de fazer outro passaporte!” Não seria preciso. No início da madrugada, alguém deixou misteriosamente a pasta perdida sem nada faltando em uma mesa na antessala da polícia.
De volta a Londres, sentada no ônibus após deixar a embaixada do Afeganistão, na Princes Gate, eu olhava fixamente para aquele passaporte, com o visto carimbado em letras que eu não compreendia: “Estou no meio do caminho. Estou geograficamente no meio. Se decidir pelo Ocidente, posso estar de volta ao Brasil amanhã de manhã. Se tomar o caminho do Oriente, amanhecerei em Cabul.”
Two roads diverged in a wood, and
I took the one less traveled by,
And that has made all the difference.
(Robert Frost)
Acusado de ser espião da CIA
Meu mundo jamais seria o mesmo.
Em Nova Delhi, hospedei-me na casa de Matthew Rosenberg, amigo e correspondente do Wall Street Journal para o Afeganistão e o Paquistão, assim como seu antecessor, Daniel Pearl, jornalista americano e judeu sequestrado e morto na cidade paquistanesa de Karachi quando apurava informações para uma reportagem sobre a Al-Qaida. Os terroristas filmaram o assassinato e mandaram aos jornais a fita de Pearl sendo decapitado. Sua história chegou a Hollywood e virou filme: A mighty heart, traduzido no Brasil como O preço da coragem, com Angelina Jolie no papel da esposa de Daniel, que vivia com ele no Paquistão e estava grávida no momento de sua morte.
Por questões de segurança, Rosenberg, a mulher e o filho do casal foram alocados em Nova Delhi. Ainda assim, Rosenberg não estava tranquilo. A característica assimétrica dos novos conflitos desafiava as agências de inteligência, as forças militares das mais ricas e poderosas nações e os mais experientes correspondentes de guerra.
(Em uma clara tentativa de intimidar Rosenberg, um jornal do Paquistão publicaria, um ano depois de nossa conversa, uma reportagem acusando-o de ser um espião da CIA e “de ter ligações com a Mossad, a agência de inteligência de Israel”.)
O único cotidiano possível
“Não vá! Não vá para o Afeganistão! Está muito perigoso, muito perigoso!”, ele repetia durante o jantar. Na minha cabeça passava a cena do aeroporto em Lisboa, os dois passaportes perdidos sem explicação, o desespero em pensar que não viajaria mais, meu último desentendimento com Deus. Eu olhava para Rosenberg estática. Até que ele mudou o rumo da conversa.
“Você tem uma lanterna?”, perguntou ele no tom de voz baixo dos resignados.
“Lanterna?”
“Você não vai desistir, não é? Não vou conseguir te convencer a não ir para o Afeganistão, estou certo?” Estava. “Então, vá. Mas leve uma lanterna. Não é raro faltar luz naquele aeroporto e você não vai gostar de se ver sozinha na escuridão ao desembarcar em Cabul.”
“Falta luz no aeroporto?”
Ele nem me deixou perguntar. Continuou:
“E não saia do hotel! Em nenhuma hipótese saia sozinha nas ruas! Não ande a pé! Nem mesmo um quarteirão! Não diga uma palavra que possa identificá-la como estrangeira. Eles precisam pensar que você é afegã!”
Eu partiria para Cabul na manhã seguinte, no voo 843 da Air India – aquela cuja resenha no guia Lonely Planet vem acompanhada da mensagem “poor records of security and safety”(registros insatisfatórios de proteção e segurança). Quando mostro o cartão de embarque, o segurança olha para mim meio desconfiado, meio penalizado, como se eu tivesse acabado de confessar um crime e me entregado ao castigo. Será que as pessoas não podem ter uma reação normal ao ouvir o nome A-fe-ga-nis-tão? Para os afegãos, é um lugar de viver, todos os dias, no único cotidiano possível. Há bebês nascendo, crianças brincando, jovens se apaixonando… Ou não? Era o que eu queria saber.
“Espere até ver as montanhas”
O assento 27F é anotado no cartão de embarque à mão, com uma caneta esferográfica roxa. Não vejo nenhuma aeromoça e é o próprio copiloto que vem com fita adesiva dar um jeito no que parece ser uma fissura na janela do passageiro sentado à minha frente. Minha poltrona não reclina. O lugar onde estão as instruções de segurança está rasgado. Por um momento desconfio que aquela geringonça não seja capaz de voar.
Mas às 7h30 o avião decola. E, assim que se estabiliza no céu, sobre a nuvem amarelada da poluição que paira sobre Delhi, eu caio no choro.
“Deus, eu agora entendo o seu sinal. Depois de ser obrigada a voar para Portugal para conseguir um simples visto, do sumiço dos passaportes, de perder o voo de volta (sim, depois de tudo, eu ainda perdi o voo de Lisboa para Londres), de quase avançar no policial português que tentava me convencer de que o acontecido era mesmo um sinal divino, de enfrentar o olhar temeroso de Rosenberg e de embarcar neste avião de hélice capenga, se ainda assim eu não desisti dessa viagem é porque eu queria muito estar aqui. Obrigada.”
Durmo. Acordo. Estou mesmo aqui? Sou a única mulher no voo, com os cabelos já devidamente cobertos por um véu vermelho, embora ninguém tenha me pedido nada. Contrariando a recomendação de Matt, pergunto para o jovem afegão no assento vizinho:
“Afeganistão?” – apontando para fora da janela.
“Não”, ele responde em inglês cristalino. “Espere até ver as montanhas. Lá será o Afeganistão.”
“Imagino que você não esteja de férias”
O dia está claro, de lindo céu azul. Então elas invadem de repente a paisagem. São tão altas que parecem estar pertinho do avião, é quase possível tocá-las; tão vastas que ocupam todo o horizonte, como uma pintura em alto-relevo. Uma colmeia de pedras, rochedos, buracos e cavernas sem fim; uma superfície árida onde não há verde nem água, nenhuma vida. (Como alguém um dia acreditou que Bin Laden estivesse escondido aqui?)
A imponente Hindu Kush ocupa 70% do Afeganistão. Outros 15% são terras secas e inabitáveis. Nos 15% restantes vivem 30 milhões de afegãos.
O avião começa a descer sobre as montanhas, parece querer pousar em uma delas; mas logo surge o grande vale, um sertão de casas baixas e tendas das bases militares. A pista de pouso não deixa dúvidas de que estamos desembarcando em uma zona de conflito. A primeira imagem que tenho guardada de Cabul é de um cemitério de tanques soviéticos, velhas carcaças para nos fazer lembrar que a guerra mais recente é travada naquele território há pelo menos trinta anos ininterruptos. A segunda imagem é dos novos caças americanos e helicópteros das organizações de ajuda humanitária.
No desembarque, um outdoor chama a atenção – Roshan Kabul, que imagino erroneamente significar “Bem-vindo a Cabul”. Era a propaganda de uma companhia de telefonia celular, sinal do progresso levado pelos estrangeiros; mais tarde eu saberia tratar-se de um dos únicos. Olho para o mesmo jovem afegão e faço sinal com a câmera fotográfica. Ele mexe a cabeça negativamente, sem sorrir.
“Isto é um aeroporto militar. Imagino que você não esteja de férias. Bem-vinda ao Afeganistão!”
Poucas ruas asfaltadas
Na entrada, muita confusão. Há luz, mas as lâmpadas piscam fracas – eu penso em Matt. Não vejo guichês de imigração, apenas um homem barbudo que grita para o sem-número de passageiros que acenam seus passaportes no ar. São majoritariamente homens, e eu me sinto invisível no meio deles. Ao pegar meu passaporte, o policial fala algo que não entendo. Diante dos meus olhos arregalados, ele se dirige ao homem na minha frente, que vira para trás e repete as mesmas palavras em dari, num tom acima. Tento explicar que não sou surda, apenas não sei falar a língua. Em vão. O guarda some com meu passaporte e eu sinto um frio na barriga. Todo mundo olha para mim. Longos minutos depois, o guarda volta: Foto? Foto? Eu entrego uma foto 3×4, que trago na carteira, e o mal-entendido se resolve. Ele me deixa seguir em frente.
Passo a bagagem por uma engenhoca de raio X e sigo por um velho saguão, que mais parece de uma rodoviária de interior, até o estacionamento esburacado. Os olhos, o nariz e a boca secam com a aridez do ar assim que coloco os pés para fora do aeroporto. Através das grades vejo Cabul a distância. Homens barbudos de turbante, vestem típicos perahan tunban como o usado por Osama bin Laden e exigido nos tempos do Talibã para eles, assim como a burca para elas. Alguns exibem velhos kalashnikovs a tiracolo e não parecem diferentes dos demais – ou a imagem que o Ocidente tem dos terroristas está muito errada ou eu desembarquei em um campo de treinamento da Al-Qaida!
A buzina do carro do intérprete com quem eu tinha marcado de me encontrar na saída do aeroporto me soa como um chamado de Alá.
Seguimos para Shahr-e Nau, o bairro onde se concentram as embaixadas, os escritórios das organizações não governamentais e os condomínios onde vivem estrangeiros. Depois da euforia inicial, eu silencio, exausta, e mergulho no cenário de Cabul. As casas, as calçadas, as pessoas que passam pela minha janela sacolejante têm a cor da poeira, um amarelado que cobre toda a cidade, do céu ao chão esburacado por onde o carro passa, deixando para trás a marca dos pneus. Poucas ruas em Cabul são asfaltadas. No máximo, um contrapiso reduzido a pedregulhos.
“Fuck off the streets!”
Tive de pedir para o intérprete parar de pedir desculpas pelos buracos que ele não cavou. Os afegãos pedem desculpas por tudo, por terem nascido. A guerra destrói cidades e vidas, mas também a autoestima dos homens.
Quando a visão se acostuma, a imagem agora mais nítida choca. Nada prepara o estrangeiro para o que ele vai encontrar no Afeganistão. É um lugar cheio de paradoxos. Medieval em muitos sentidos – na miséria, no caos e na poeira desértica das ruas sem asfalto, nos mercados de escambo a céu aberto, no pastor que atravessa seguido por seu rebanho de cabras, nas casas de tijolo de barro que sobem as montanhas, nas mãos estendidas em direção ao carro sob burcas azuis; burcas que mendigam por comida e dinheiro, estranhas e claustrofóbicas.
Mas há também outdoors com propagandas de aparelhos de celular, meninos lavando por um trocado o vidro dos carros importados, como em qualquer grande metrópole do mundo, e esqueletos de prédios envidraçados perdidos no antigo cenário de destruição. O novo e o velho não se encaixam. É como se tudo estivesse fora do lugar.
Um moderno avião de combate B-52 atravessa o céu – provavelmente da base aérea de Bagram, a poucos quilômetros da capital, em direção a Kandahar ou Helmand, os territórios do sul dominados pelo Talibã, onde as tropas americanas têm realizado intensivos bombardeios aéreos. Mais adiante, sob a mira de uma metralhadora automática, somos empurrados para a calçada por um tanque de guerra que transporta soldados para os campos de batalha [APC, na sigla em inglês].
“Fuck off! Fuck off the streets!”, grita o soldado com o corpo para fora do primeiro de três blindados, girando sua arma 180 graus na direção de quem quer que esteja à sua frente. Outro faz o mesmo no último tanque, mirando a arma para os carros que vêm atrás.
Pedaços humanos
“É assim que eles [americanos] querem ganhar os corações e as mentes dos afegãos”, o intérprete comenta, irônico. “Se estão tão preocupados com a própria segurança, como acham que podem proteger os afegãos?”
Parecem mesmo querer apenas nos lembrar de que estamos em uma zona de guerra. Acontece que, com o tempo, os tanques, aviões e helicópteros passam a fazer parte da paisagem cotidiana e nada mais espanta. A vida segue, como se eles não estivessem ali. Os carros de combate e as picapes 4×4 das organizações de ajuda humanitária circulam com vidros à prova de balas, detectores de bombas e seguranças privados fortemente armados. Alheias, mulheres fazem compras nas quitandas, crianças colorem o céu empinando pipas, homens jogam conversa fora sentados de cócoras nas esquinas, como em cidades tranquilas de interior; o cheiro que vem das casas anuncia o que as famílias afegãs preparam para o almoço.
Cabul transmite uma falsa sensação de segurança. É preciso algum tempo para compreender as nuances mais perversas da vida cotidiana em uma zona de conflito. No calendário popular afegão, por exemplo, os dias são contados em explosões: “Que dia foi tal coisa? Ah, tal coisa foi um dia depois de tal atentado, não?”
Naquela primeira semana de estada na capital, eu presenciaria dois atentados. Nos arredores da Praça Charayee Massoud, próxima da Embaixada dos Estados Unidos, um homem-bomba detonou explosivos, causando estragos em um raio de 100 metros; o local onde a bomba explodiu ficou marcado apenas por mais uma cratera nas já esburacadas ruas de Cabul. Prédios envidraçados, como os que eu tinha visto na chegada, agora em estilhaços – uma loja da Hyundai, a Saboory Diagnostic Clinic e o Afghan International Bank (assim mesmo, com luminosos escritos em inglês). Dos dois lados da calçada, comerciantes limpavam o sangue e tentavam improvisar, com pedaços de lençol e cobertores, portas e janelas arrancadas.
Antes mesmo da chegada do resgate, que só fez recolher os corpos – três afegãos mortos, dois funcionários públicos que faziam a limpeza das ruas e um senhor que passava de bicicleta, além do suicida -, a vida voltava ao normal, como se nada tivesse acontecido. Zabair, de 9 anos, e Faisal, de 10 anos, que vivem nas redondezas, tentavam junto com outras crianças subir nas árvores, onde tiras de pele e carne descansavam sobre os galhos. Eles brincavam de encontrar pedaços humanos. Senti enjoo.
Cenário dos infernos
“Isso é a propaganda talibã”, me diria mais tarde o porta-voz da Força Internacional de Assistência à Segurança, general Richard Blanchette, em uma conversa em seu QG em Cabul. (As forças internacionais atingiriam um pico de 150 mil soldados de 41 nações no Afeganistão.) Aos radicais, não importa que os afegãos sejam as principais vítimas dos ataques da insurgência. Eles revelam a instabilidade do país, a falta de controle do governo e a incapacidade das forças estrangeiras de proteger os cidadãos; espalham o medo e a insegurança. E me ensinaram a primeira lição da guerra, algo que os afegãos já sabem há muito tempo: não importa onde você esteja ou quão tranquilo o ambiente lhe pareça, o perigo é sorrateiro, silencioso, inesperado.
No Hotel Safi, em Shar-e Nau, naquela primeira noite em Cabul, os seguranças me obrigaram a passar pelo detector de metais, vasculharam minha bolsa, reviraram objetos como o celular e a câmera fotográfica. Nos dias seguintes, reconhecendo meu rosto, já me deixavam passar direto por eles, desviando do detector. Não que fossem relapsos. Apenas não viam motivo para sua presença ali a não ser para confortar os hóspedes, colaborando com a tal falsa sensação de segurança de Cabul. Os vigias do hotel sabiam que no Afeganistão ninguém está seguro; e se um homem-bomba decidisse explodir aquele lugar, apertaria o detonador antes que eles pudessem perceber algum movimento. Foi o que aconteceu meses depois.
O Safi Landmark (algo como cartão-postal) era um arranha-céu para o padrão local. Oito andares, chão de mármore, paredes espelhadas por fora e, por dentro, um hall central iluminado naturalmente pelo teto de vidro. Os corredores dos quartos formavam um quadrado em torno dessa área central. De cada andar, era possível enxergar o térreo, onde funcionava uma simpática lanchonete com mesinhas ensolaradas. Nos três primeiros andares, acessíveis por escadas rolantes, havia lojas – de eletrônicos, moda feminina, calçados, celulares, utensílios domésticos, além de caixas eletrônicos (que nunca funcionavam, diga-se). Um shopping center em plena guerra; porque, mesmo na guerra, as pessoas têm de continuar a viver, do contrário estariam morrendo aos poucos sem morrer.
Na cobertura, havia um restaurante onde eu tomava café da manhã todos os dias, com vista para os picos ainda nevados da Hindu Kush, que contrastavam com o céu de azul intenso, impecavelmente límpido, como se lá em cima os astros estivessem alheios ao caos aqui embaixo.
Passei a primeira hora de minha estada no terraço aberto a observar Cabul fervilhando – o horizonte amarelado, a destruição e a poeira maciça que sobe das ruas dão a impressão de que a cidade de fato ferve em brasa. É um cenário dos infernos!
A traição se paga com a vida
Meses depois, atiradores abriram fogo na direção das duas entradas do hotel, liberando o caminho para oito homens-bomba chegarem ao hall central e detonarem os explosivos enrolados no próprio corpo, causando assim o maior estrago possível. Pelo menos 18 mortos, entre eles os seguranças que eu conhecera. O hotel, reduzido a estilhaços e sangue naquele atentado horrendo. Os ataques suicidas são assim: inevitáveis. Quando se tem consciência disso, o simples fato de ficar parada no trânsito caótico de Cabul pode ser uma experiência assustadora. O corpo entra em estado de alerta – o coração aperta, a garganta seca, os músculos se contraem.
E como pode um lugar assim fascinar o estrangeiro? Pensei muitas vezes sobre isso nos dias, meses, anos depois daquela primeira viagem. Em busca de respostas, voltei ao Afeganistão em 2011 para uma incursão solitária e pessoal. Reencontrei velhos amigos, alguns deles personagens deste livro que eu acompanhava a distância. Neles descobri as contradições de um país onde se morre tão facilmente que no simples sobreviver cotidiano existe muita vida. Através de seus olhos pude enxergar alguma beleza em meio ao caos – na gente que não tem nada, mas divide tudo, que faz crescer no solo seco e minado as flores mais bonitas que eu já vi; nos mais velhos que transmitem aos jovens a sabedoria que o Ocidente já não encontra em livros; e no respeito à família e à tribo, mais importante do que quaisquer interesses individuais.
São terras de homens bárbaros, capazes de cortar o pescoço de uma cabra – ou de um inimigo – com a mesma naturalidade que se abre um pão de cachorro-quente nas barracas da Quinta Avenida, em Manhattan; onde a traição se paga com a vida; e os meninos aprendem a usar kalashnikovs antes mesmo de desenhar a primeira letra em dari. Ao mesmo tempo, pintam os olhos para se proteger de maldições, recitam poesias, cultivam rosas e andam de mãos dadas.
Histórias do 11 de setembro
Neste livro-reportagem – O Afeganistão depois do Talibã -, onze histórias afegãs retratam a década do terror como vista e vivida por eles. Onze protagonistas de uma tragédia frequentemente contada pela ótica do Ocidente. Onze vidas afetadas pelo maior atentado da história da humanidade, como peças manipuladas a distância no tabuleiro do jogo de nações iniciado naquela manhã de 11 de setembro de 2001.
Entender esse jogo tão complexo em alguns breves embora intensos encontros, muitas vezes dificultados pelos perigos do cotidiano em Cabul, seria por demais pretensioso. Mas ouvir esses personagens é um começo e tanto – e assim o fiz com os ouvidos, a mente e o coração abertos. São vozes quase sempre negligenciadas, mas essenciais no processo de compreensão dos acontecimentos. Seus depoimentos se encaixam como em um quebra-cabeça dessa guerra sem fim; e revelam outro lado da luta contra o terror: o da dimensão humana.
Este não é um livro sobre o Afeganistão, mas do Afeganistão para você, leitor. Espero que aprecie a leitura, como cartas recebidas de amigos distantes. Fatema, mulá Abdul, marechal Fahim, Massouda, Wahida, Alberto, Ajmal, Miguel, Sayed, Shah e Sadaf contam aqui suas histórias do 11 de setembro. Agradeço imensamente a eles por confiarem em mim como sua interlocutora.
Fonte: Observatório da Imprensa

