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Nós resistiremos: O paradoxo racial do estado brasileiro e a resiliência dos povos indígenas

Wilson Matos da Silva (*) –

O Brasil nasceu sobre um profundo contrassenso histórico: enquanto o Estado afirmava promover a “civilização”, utilizava políticas de apagamento, violência e controle para moldar a população a um ideal de “brancura”, como demonstra Jerry Dávila em O Diploma da Brancura. E, no entanto, os povos indígenas — alvo central desse projeto — preservaram sua existência, sua cultura e sua dignidade. Hoje, quando o país tenta novamente redefinir quem tem direito de existir, nós repetimos com força: NÓS RESISTIREMOS.

O livro de Dávila revela que a Primeira República e os governos seguintes usaram a escola como mecanismo de engenharia racial. A educação do corpo — higiene, postura, disciplina — era tratada como técnica de “correção”, como se o “tropical” fosse degenerado e exigisse ser domado.

Mas o paradoxo é gritante: os europeus que instauraram esse discurso eram conhecidos por seus hábitos insalubres, enquanto os povos indígenas mantinham práticas higiênicas avançadas, banhos diários, uso de ervas e vapores, e formas tradicionais de cuidado com o corpo e com o espírito que hoje são reconhecidas como medicina preventiva.

Ou seja: chamaram de “atraso” justamente aquilo que era civilização. E chamaram de “civilização” aquilo que era atraso. Esse é o núcleo do contrassenso brasileiro: a brancura foi tratada como medida universal de valor, mesmo quando seus fundamentos eram historicamente frágeis.

Outro contrassenso profundo está na política de apagamento identitário. Por décadas, o Estado estipulou que “se não aparece, não existe; se não existe, não tem direito”. Para impor essa lógica, apagou indígenas dos censos, classificando-nos como “pardos”, “caboclos” ou “mestiços”, como se fosse possível dissolver um povo apenas renomeando-o.

Porém, o que não contavam é que a identidade indígena não se define por categorias administrativas, mas pela continuidade cultural, pela língua, pelo território, pela parentela, pelo rezo, pela memória que atravessa gerações. O Estado acreditou que poderia nos extinguir estatisticamente. Mas nós sobrevivemos culturalmente.

A história registra, ainda, os crimes extremos cometidos contra nossos povos: distribuição de roupas contaminadas com varíola, envenenamento com arsênico, massacres para “limpar” territórios, expulsões e remoções forçadas. Isso foi genocídio material, deliberado, planejado. Mas, novamente, o contrassenso se impõe: muitos povos resistiram graças à força de sua medicina tradicional — o fumo, as ervas, o canto, as rezas, os vapores, os troncos medicinais, a sabedoria que jamais coube nas categorias de “higiene” inventadas pelas elites republicanas.

A medicina que o Estado chamava de “curandeirismo” foi o que nos curou. A espiritualidade que chamavam de “superstição” foi o que nos manteve vivos.

Com a pressão internacional e a vigência de tratados como a Convenção 169 da OIT, o genocídio físico tornou-se mais difícil de justificar. O Estado, então, intensificou o etnocídio: destruir o povo não pelo corpo, mas pela identidade. Impôs um sistema escolar monolíngue, tentou dissolver nossas lideranças tradicionais, desestruturou comunidades com políticas urbanas forçadas, criminalizou rituais, deslegitimou cosmologias, incentivou a conversão compulsória e criou leis para “integrar” os indígenas à comunhão nacional — uma forma elegante de dizer: desapareçam como povos.

Mas, o efeito produzido foi exatamente o oposto do desejado. Quanto mais o Estado tentou apagar nossa língua, mais ela se fortaleceu. Quanto mais tentou submeter nossas parentelas a modelos políticos externos, mais as retomadas reorganizaram os territórios. Quanto mais tentou nos impor uma identidade genérica — “pardo”, “mestiço”, “integrado” — mais nós reafirmamos quem somos.

É o movimento da história: cada violência cria em nós uma resposta ancestral. Cada política de apagamento gera uma política de renascimento. Cada tentativa de destruição reforça o compromisso das novas gerações com a preservação da memória, do canto, do rezo, do corpo, do tekoha.

E, é por isso que hoje, no Brasil e no mundo, ecoamos com firmeza: NÓS, POVOS INDÍGENAS, RESISTIREMOS! Resistiremos com nossos corpos, porque somos terra. Resistiremos com nossas línguas, porque são memória. Resistiremos com nossos escritos, porque são testemunho. Resistiremos com nossos territórios, porque são futuros.

O Estado tentou nos exterminar fisicamente. Não conseguiu. Tentou nos exterminar culturalmente. Não conseguiu. Tentou nos apagar da história. Não conseguiu. E não conseguirá!

Porque enquanto houver um canto, uma criança aprendendo a língua, um ancião transmitindo um rezo, uma retomada sendo levantada, uma mulher indígena escrevendo sua história, um jovem defendendo a terra, um pajé acendendo o fumo — não há assimilacionismo capaz de apagar um povo.

Nós resistimos! Nós resistimos! E CONTINUAREMOS RESISTINDO.

(*) É Indígena, Advogado Criminalista OABMS 10.689, especialista em Direito Constitucional, é Jornalista DRT 773MS. residente na Aldeia Jaguapiru – Dourados MS. [email protected]

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