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Médicos relatam demissões, agressões e coerção para receitar ‘tratamento precoce’

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Mesmo com ineficácia comprovada na prevenção ou tratamento da doença, esses remédios são alardeados por autoridades, gestores e até colegas como solução mágica para a pandemia

Médicos na linha de frente da Covid-19 relatam abusos e coerção frequentes para que receitem o chamado “kit Covid”. Mesmo com ineficácia comprovada na prevenção ou tratamento da doença, esses remédios são alardeados por autoridades, gestores e até colegas como solução mágica para a pandemia.

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A infectologista Tassiana Galvão, professora da PUC-SP, conhece bem os prejuízos causados pela prescrição indiscriminada destes medicamentos. No dia 31 de março, ela viu o marido, Danilo Galvão, também infectologista, perder o avô para a doença após uso de remédios do kit prescritos por outro profissional. Guilherme Galvão morreu aos 79 anos com insuficiência hepática.

A complicação é um dos riscos associados ao uso do kit, que supostamente retardaria e amenizaria os efeitos da doença — daí também ser chamado de “tratamento precoce”. Na prática, nenhuma autoridade de saúde respeitada, como a OMS ou a Anvisa, o recomendam. Pelo contrário: alertam para possíveis efeitos colaterais, como complicações renais e hepáticas.

Tassiana, que atua com controle de infecção hospitalar no interior de São Paulo, recusou-se a assinar protocolos para a adoção do kit em hospital da região. Foi demitida no dia seguinte.

Seu relato é um entre vários de médicos pelo Brasil que têm sofrido múltiplas retaliações e pressões para adoção do tratamento. A intimidação vem de políticos populistas e colegas de profissão com viés ideológico ou desatualizados, além de pacientes desesperados e iludidos pelas fake news sobre o assunto.

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— Na busca pelo voto e aprovação, políticos veem o kit como caminho fácil para agradar a população leiga, a solução para salvar a saúde e garantir retorno da economia — diz Tassiana.

A pressão se traduz em demissões, ameaças, contratações e escalas de plantão condicionadas à prescrição do kit, assédio verbal e uma série de irregularidades praticadas por gestores públicos, privados e colegas de profissão, relatam os médicos.

Maria Flávia Saraiva, médica da família que atua na mesma região de Galvão, pediu demissão de um hospital em que trabalhava havia quatro anos devido as pressões que vinha sofrendo. Assim como colegas, recebe constantes ameaças e xingamentos, inclusive em redes sociais, acusando-a de mentiras sobre os remédios e até assassinato deliberado de pacientes.

— Me colocar contra um tratamento que o presidente é a favor parece que me coloca como inimiga do Estado. Minha família fica horrorizada com os ataques. Por isso muitos colegas se calam — desabafa, em alusão à reiterada defesa da cloroquina e de outros medicamentos sem eficácia, promovidos pelo presidente Jair Bolsonaro desde o início da pandemia.

O endosso do kit por autoridades aumentou a procura de pacientes pelos medicamentos— e a tensão e tempo dos atendimentos. Em cidades do interior de São Paulo, o protocolo de tratamento precoce adotado oficialmente por municípios inclui 14 remédios.

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— Metade da consulta é gasta desmentindo fake news — conta a médica da família. — A insistência varia com a moda: antes era a cloroquina, agora ivermectina, amanhã quem sabe? Quando negamos, os pacientes xingam, brigam, vão na ouvidoria.

‘Máquina de prescrições’

Nem mesmo estudantes de medicina têm passado ilesos pela coerção. Um residente da região metropolitana de Cuiabá, que pediu para não ser identificado por receio de retaliações, relata que viu sua supervisora numa Unidade Básica de Saúde sofrer represálias, como redução de equipe, por se negar a prescrever o kit. Ao questionar o uso da ivermectina num dos atendimentos com outro supervisor, foi repreendido.

— O médico responsável me mandou calar a boca e disse que, se a gente não quer trabalhar, tem muita gente precisando de emprego. A ameaça é clara: ou aceita o absurdo ou está fora— diz o residente.

Os gastos públicos com os medicamentos duvidosos, por prefeituras que adotaram oficialmente o protocolo, refletem-se na pressão sobre médicos para darem vazão aos estoques adquiridos. A pressão também assume a forma de receitas padronizadas entregues em blocos para que médicos apenas carimbem e assinem a prescrição do kit, relatam profissionais ouvidos pela reportagem que preferiram não se identificar.

A coação também cria situações aterradoras como a relatada pelo profissional de Cuiabá que, quando atendido com Covid-19 por outro médico, ouviu do colega uma recomendação incomum:

— Ele disse “vou te prescrever esses remédios porque sou obrigado, mas por favor não tome”. Somos forçados ou demitidos. Virou uma máquina de prescrições.

Julia Canellas, médica em São Bento do Sapucaí (SP), tem o respaldo da Secretaria de Saúde da cidade para não receitar os remédios. Em sua atividade anterior em município próximo, no entanto, lidou com profissionais mais velhos que apoiavam o kit. Na cidade atual, são os pacientes quem vão à Secretaria reclamar da falta de prescrições.

— Estamos fazendo o melhor para eles, mas eles não veem — lamenta.

Em comum, os médicos relatam insatisfação com a falta de apoio do Conselho Federal de Medicina (CFM)na pressão que vêm sofrendo por defenderem a ciência.

— Esses kits com 15 remédios são uma salada mista com grandes riscos óbvios. Não há respaldo da ciência, e o Brasil tem sido um laboratório a céu aberto. O CFM diz que garante a autonomia do médico mas, na prática, essa autonomia é só pra quem receita — diz Saraiva.

Procurado, o CFM não respondeu sobre as alegações. (O Globo)

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