Nascida num sítio no então municipio de Dourados – hoje parte de Glória de Dourados – Mazé Torquato Chotil, jornalista, pesquisadora e autora, estudou em São Paulo e mora em Paris desde os anos 80. Ela estará em Campo grande (11 e 12/11: UEMS, UFMS e Casa de Cultura) para apresentar seu novo livro Mares agitados: na periferia dos anos 1970. Depois seguirá para Dourados, Glória de Dourados e Angélica.
O livro tem como personagem principal uma jovem estudante do ensino médio que deseja fazer faculdade. Com a falta de universidade na sua régião, na época, como outros colegas de classe, migra para São Paulo e vai morar na periferia, em Osasco, no bairro de muitos trabalhadores, inclusive nordestinos membros de sua família.
Em meados dos anos 70, num país sob ditadura, a personagem começa contando sua viagem, do seu vilarejo na época, para a grande cidade, São Paulo. Vai descobrir a maior cidade da América Latina, sua história, seus monumentos… Vai buscar trabalho para financiar seus estudos, fazer amizade no colégio e se preparar para passar o vestibular. Conseguirá seu objetivo?
Na apresentação da obra, a professora e escritora das academias de Ciências de Lisboa e Academia Sul-Mato-Grossense de Letras, Raquel Naveira, diz sobre a obra: O processo memorialístico da escrita de Mazé Torquato Chotil lembrou-me a obra literária da escritora e professora francesa Annie Ernaux (1940), laureada com o Nobel de Literatura de 2022. Annie é autobiográfica, com romances que remetem à sociologia. Com coragem, inteligência, sentimento sem sentimentalismo, ela vai penetrando em suas raízes, trazendo estranhamentos coletivos de sua memória pessoal. Vai traçando um vasto panorama, explorando seus cadernos de anotações, planos e reflexões.
O Mato Grosso do Sul está em vários dos 14 livros publicados por Mazé Torquato Chotil. Filha de nordestinos vindos do Sul do Céará para colonizar a área da CAND – Colônia Agrícola Nacional de Dourados, ela escreveu Minha Aventura na Colonização do Oeste romance que fala da experiência dos pais na região; Lembranças do sitio (traduzido para o francês); Lembranças da vila; Na Sombra do Ipê; e Nascentes vivas para os povos Guarani, Kaiowá e Terena. Fora as biografias que escreveu, seus romances estão marcados pela sua experiência de vida no sul do Mato Grosso dos anos 1950, Mato Grosso do Sul hoje.
MAZÉ TORQUATO CHOTIL
Mazé Torquato Chotil é jornalista e autora. Doutora (Paris VIII) e pós-doutora (EHESS), nasceu em Glória de Dourados-MS, morou em Osasco-SP e vive em Paris desde 1985.
Tem, com Mares agitados 13 livros publicados (cinco em francês). Fazem parte deles: Na sombra do ipê e No Crepúsculo da vida (Patuá); Lembranças do sítio / Mon enfance dans le Mato Grosso; Lembranças da vila; Nascentes vivas para os povos Guarani, Kaiowá e Terena; José Ibrahim: O líder da grande greve que afrontou a ditadura; Trabalhadores Exilados; Maria d’Apparecida negroluminosa voz; e Na rota de traficantes de obras de arte.
Em Paris, trabalha na divulgação da cultura brasileira, sobretudo a literária. Foi editora da 00h00 (catálogo lusófono) e escreveu – e escreve – para a imprensa brasileira e sites europeus.
Eventos
Campo Grande
11/11 às 15:30: Conversa com acadêmicos de Letras da UEMS sobre seu novo livro, Mares agitados: na periferia dos anos 1970 (Patuá, 2024). O bate-papo terá mediação do prof. Dr. Volmir Cardoso e do prof. Dr. Neurivaldo Pedroso Junior. O evento acontecerá na sala T11 do Bloco C, na Unidade Universitária de Campo Grande (UEMS –UUCG).
11/11, às 19h
UFMS: com a participação dos setores de Música e Literatura, sob a coordenação do Prof. Marcelo Fernandes Pereira. Conversa sobre a biografia da cantora lírica e de MPB morta em 2017 em Paris, Maria d’Apparecida
12/11, às 9h: Conversa com o público e alunos na Casa de Cultura.
Dourados
13/11, às 19h: Câmara Municipal, com mediação de Carlos Amarilha, historiador, poeta e doutor em Educação (UCDB). Shopping Avenida Center Dourados, Av. Marcelino Pires, 3495 – Jardim Caramuru.
Gloria de Dourados
14/11 na Câmara Municipal
Contatos
Editora Patuá: https://www.editorapatua.com.br/mares-agitados-na-periferia-dos-anos-1970-romance-de-maze-torquato-chotil/p
Autora: Mazé Torquato Chotil: [email protected]
Confira um trecho do romance:
Começo de dezembro de 1974.
Após percorrer cerca de mil quilômetros, o ônibus para na Rodoviária de São Paulo, frente à estação de trem Júlio Prestes. Abro os olhos pesados de sono com o toque da amiga no meu braço:
– Chegamos.
Sou atraída pelas luzes coloridas. Somos três, ou melhor, quatro, a cunhada da amiga tem um bebê nos braços. Tenho dezesseis anos e muita vontade de descobrir o novo mundo que se abre a mim na grande cidade, a capital econômica do país. Uma cidade de muitas possibilidades, que se orgulhava de construir um prédio por dia já nos anos 1950. Eu espero realizar meu sonho de entrar para a faculdade. Será que conseguirei? Ainda está escuro. Espero que o sol não tarde a se mostrar. Nada vi da viagem noturna, a não ser as rodoviárias, onde ajudei a preparar mamadeiras para o recém-nascido.
A noite foi curta, dormida sentada na poltrona do ônibus, um sono picado com as paradas…. Espero dormir em uma cama hoje à noite.
Mais de 45 anos se passaram entre aquele momento e a escrita destas linhas. As amigas estavam indo para a mesma cidade onde morava minha irmã mais velha, na periferia oeste da Grande São Paulo. O pai da criança ainda não conhecia o filho, só soubera da sua existência quando ele nascera, havia alguns dias. Tinha partido para a cidade grande procurar trabalho, a fim de ter os recursos para continuar os estudos e obter o sustento da família que desejava formar. As amigas, tal como eu, desejavam se empregar pelas mesmas razões. Nossa cidadezinha não tinha faculdade naqueles anos 1970; hoje, a segunda cidade do estado, a cerca de setenta quilômetros de distância do meu vilarejo, tem muitas possibilidades de estudos universitários, sem falar da quantidade de faculdades na capital do novo estado, Mato Grosso do Sul.
Trabalho também não havia para todos os jovens da minha idade, e os da geração precedente, na casa dos vinte anos na época. Razão pela qual muitos dos meus amigos e amigas já estavam em São Paulo, Rio de Janeiro ou Rio Grande do Sul trabalhando para pagar os estudos, já que os pais, com tantos filhos, nem sempre possuíam os meios financeiros para assumir os custos de alojamento, alimentação e faculdade. As universidades públicas eram raras, portanto, difíceis de entrar.
O pai da criança, meu amigo Oswaldo, tendo partido meses antes, encontrou trabalho na sede de um grande banco, o Bradesco, na Cidade de Deus, em Osasco. Minhas amigas me deixariam na casa da minha irmã, não muito longe de onde morava o irmão e onde iriam viver. Viajar com elas foi uma grande oportunidade. Havia muito tempo queria conhecer São Paulo, a capital econômica do Brasil, onde poderia continuar os estudos. Mas de que jeito, como viajar sem companhia? “Moça séria” não viajava sozinha, sem risco de ficar falada e não arrumar mais marido, segundo minha mãe. Papai tinha que cuidar do comércio e mamãe da casa, sem falar dos custos que a viagem representaria. Não, até então não tinha sido possível!
Sentindo que os recursos estavam se mostrando insuficientes para manter os filhos maiores em escola privada, já que a pública não abrira cursos para todas as séries naquele ano, papai resolveu mudar-se para São Paulo, onde viviam alguns familiares. No ano anterior, tinha trocado seu sítio de café por duas casas residenciais em Osasco, lugar para onde esperava se mudar desde que vendesse as mercadorias do comércio e alugasse o salão comercial e a casa residencial nos fundos do terreno, onde morávamos.
Os sitiantes, parte importante dos nossos clientes, estavam escasseando. Quem se deu bem com as boas colheitas estava vendendo seus lotes para comprar, ou obter do governo, terras mais extensas na parte norte do estado do Mato Grosso ou em Rondônia. Dessa forma, começaram as concentrações de sítios, criando grandes fazendas para a produção de gado, que não demandavam muitos peões. Com essa transformação, também se foram as plantações de café, ameaçadas anualmente pelas geadas e pela política do governo.
Sem falar que o vilarejo tinha levado um choque com as erosões que criaram buracos enormes na terra arenosa, com a falta de canalização de águas pluviais e de esgoto, e sem vegetação que pudesse resguardar a terra do perigo. Até o Exército tinha ido socorrer o município sem recursos. A mudança estava, portanto, anunciada, mas, visto as dificuldades de tal empreitada, não acreditei que pudesse acontecer. Ou não quis acreditar.