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Marco temporal: quando o direito cede lugar à negação da história

Thiago Leandro Vieira Cavalcante (*) –

O debate em torno da tese do chamado “marco temporal de ocupação” das terras indígenas tem sido apresentado, muitas vezes, como uma controvérsia técnica, restrita ao universo jurídico. Nada poderia ser mais enganoso. Trata-se de uma disputa sobre memória histórica, justiça constitucional e o próprio significado de civilização em um país marcado pelo colonialismo interno.

Para compreender o problema, é necessário partir de um ponto básico, frequentemente omitido no debate público: as terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas não derivam de concessão estatal, não se submetem à lógica da posse civil comum e não podem ser usucapidas. Eles foram reconhecidos desde o período colonial, embora descumpridos com contumácia. Mesmo a legislação da Coroa portuguesa, em diferentes momentos, admitiu que os povos indígenas possuíam direitos próprios sobre as terras que tradicionalmente ocupavam.

No plano constitucional, esse reconhecimento é ainda mais claro. Desde a Constituição de 1934, o Brasil passou a prever, de forma expressa, a proteção às terras indígenas. De fato, essas previsões foram sistematicamente violadas, mas demonstram que a ideia de um direito territorial indígena antecede em décadas a Constituição de 1988.

O texto constitucional de 1988 representou uma ruptura qualitativa. Não apenas reafirmou esses direitos, como lhes conferiu um estatuto jurídico robusto ao qualificá-los como originários e imprescritíveis. Em termos simples: as terras indígenas não pertencem ao Estado para depois serem concedidas aos povos indígenas. Elas existem juridicamente antes do próprio Estado. Por essa razão, não se perdem com o tempo, não se submetem à lógica da posse privada comum e não podem ser adquiridas por usucapião.

A Constituição foi além ao afirmar que são nulos os títulos de propriedade privada que recaem sobre terras indígenas, independentemente de quando tenham sido concedidos. Isso ocorre porque esses títulos já nasceram inválidos: foram emitidos ignorando direitos indígenas que existiam antes deles. Em outras palavras, o Estado não poderia ter vendido, doado ou reconhecido como privadas terras que, juridicamente, nunca deixaram de pertencer aos povos indígenas. Isso não é um detalhe técnico, mas uma escolha política e moral do constituinte: enfrentar uma história secular de esbulho territorial, violência e expulsões forçadas.

É justamente esse ponto que a tese do marco temporal procura subverter. Ao sustentar que apenas as terras ocupadas pelos indígenas em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição, estariam protegidas. Essa tese cria um critério que simplesmente não existe no texto constitucional. Mais grave ainda, ela ignora deliberadamente o contexto histórico que explica por que muitos povos indígenas não estavam em seus territórios nessa data: porque haviam sido expulsos, removidos à força, confinados ou dizimados por políticas estatais e interesses econômicos.

Exigir a presença física em 1988 equivale a responsabilizar as vítimas pelos crimes que sofreram. É transformar a violência colonial em critério jurídico. Não por acaso, após intensa mobilização dos povos indígenas e de amplos setores da sociedade civil, o Supremo Tribunal Federal declarou a tese do marco temporal inconstitucional. O STF não criou direito, apenas reafirmou o que a Constituição já dizia de forma inequívoca.

Nesse contexto, todas as iniciativas do Congresso Nacional que pretendem restaurar o marco temporal esbarram em um limite constitucional evidente. Não se trata de um conflito político comum entre Poderes, mas de uma tentativa de esvaziar direitos fundamentais e cláusulas estruturantes da Constituição por vias indiretas. Leis que negam direitos originários não produzem pacificação, produzem litígio permanente.

Aliás, a promessa de “pacificação” associada ao marco temporal é uma ilusão. Não há pacificação possível quando os sujeitos mais diretamente afetados, os povos indígenas, rejeitam de forma categórica a tese. Para eles, a terra não é apenas um ativo econômico, mas a base material, cultural e espiritual de sua existência coletiva. A história demonstra que povos privados de seus territórios não desaparecem, resistem.

Preocupa, ainda, a abertura recente pelo STF, para a possibilidade de indenização pela chamada “terra nua” a ocupantes não indígenas. Se aplicada de maneira ampla e sem critérios rigorosos, essa interpretação corre o risco de produzir um efeito desastroso: premiar aqueles que se beneficiaram de esbulhos, grilagens e violências históricas, convertendo a ilegalidade passada em direito indenizável.

Do ponto de vista civilizatório, a solução é simples, ainda que politicamente difícil: aplicar integralmente o artigo 231 da Constituição. Isso significa reconhecer os direitos territoriais indígenas sem condicionantes artificiais, sem marcos temporais inventados e sem compensações que convertam a espoliação em vantagem econômica.

Se o debate sobre indenizações deve existir, ele precisa ser recolocado em seus termos corretos. Os sujeitos coletivos que efetivamente sofreram danos históricos, materiais e culturais foram os povos indígenas. Reconhecer isso não é um gesto ideológico, mas um dever constitucional e ético. O que se discute, no fundo, não é apenas terra, mas se o Brasil está disposto a enfrentar seu passado colonial ou a seguir administrando-o sob novas fórmulas jurídicas.

(*) Doutor em História. Professor Associado na Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD.


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