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Limitada teologia do domínio (Reconstrucionismo Cristão) no contexto brasileiro

Reinaldo de Mattos Corrêa*

A Teologia do Domínio (Reconstrucionismo Cristão), corrente teológica que defende a aplicação integral das leis mosaicas, incluindo as penais, como fundamento para a organização sociopolítica contemporânea e a busca de um “domínio” cristão sobre todas as esferas da cultura antes do retorno de Cristo, tem encontrado eco em alguns segmentos evangélicos brasileiros. Sua proposta de uma sociedade teonomicamente regrada e seu otimismo pós-milenista acerca da cristianização da cultura desafiam paradigmas teológicos tradicionais e levantam questões fundamentais sobre a relação entre fé e poder, lei e graça, Igreja e Estado. Este texto busca analisar criticamente as premissas e implicações desta teologia no complexo e plural contexto sociorreligioso do Brasil, confrontando suas afirmações hermenêuticas, eclesiológicas, éticas e escatológicas com a narrativa bíblica central e as realidades nacionais. Vejamos, algumas questões importantes que revelam as inconsistências da Teologia do Domínio:

I. Hermenêutica e Fundamentação Bíblica:

  1. Como a Teologia do Domínio reconcilia a ênfase na imposição da Lei Mosaica (especialmente as penais) com a declaração paulina de que “Cristo é o fim da lei para justiça de todo aquele que crê” (Romanos 10:4) e a Nova Aliança estabelecida em Jeremias 31:31-34?
  2. Se o “domínio” em Gênesis 1:26-28 é o mandato fundante, por que Jesus, durante seu ministério terreno, explicitamente rejeitou as tentativas de estabelecer um reino político-terrestre (João 6:15, João 18:36) e definiu seu reino como “não sendo deste mundo”?
  3. A interpretação pós-milenista da Teologia do Domínio (vitória cultural completa antes da volta de Cristo) não entra em conflito irreconciliável com as advertências neotestamentárias sobre crescente apostasia e perseguição nos últimos tempos (2 Tessalonicenses 2:3, 2 Timóteo 3:1-5, Mateus 24:9-13)?
  4. Como se justifica a seletividade na aplicação da Lei do Antigo Testamento (por exemplo, foco em penalidades, estruturas sociais), ignorando outras centenas de preceitos (dietéticos, cerimoniais, agrícolas) que a mesma Teologia reconhece como cumpridas ou abolidas em Cristo?
  5. A insistência na lei veterotestamentária como padrão para a sociedade moderna não minimiza a radical novidade, a suficiência e a autoridade suprema do ensino ético de Jesus e dos apóstolos no Novo Testamento?

II. Cristologia e a Natureza do Reino:

  1. Se o estabelecimento do “domínio” terreno é central, por que a cruz de Cristo – símbolo máximo de fraqueza, sofrimento e sacrifício, não de poder político imediato – permanece como o evento central da fé cristã e o modelo de discipulado (Filipenses 2:5-8)?
  2. Como a Teologia do Domínio interpreta a afirmação de Jesus de que o seu Reino não é deste mundo (João 18:36) à luz de sua própria agenda de conquista cultural e política deste mundo?
  3. A busca pelo poder político e cultural como via principal para estabelecer o Reino de Deus não inverte a prioridade estabelecida por Jesus: buscar primeiro o Reino de Deus e sua justiça (Mateus 6:33), confiando que as demais coisas serão acrescentadas por Deus, segundo sua soberania?
  4. A ênfase no domínio e no triunfo visível não obscurece a doutrina bíblica do “mistério” do Reino (Marcos 4:11), que cresce de forma paradoxal, como o grão de mostarda, frequentemente na fraqueza e na obscuridade, até a consumação final?
  5. Como a Teologia do Domínio evita o risco de transformar a mensagem do Evangelho – centrada na graça, redenção e reconciliação por intermédio de Cristo – em um projeto político-religioso de poder?

III. Eclesiologia e o Papel da Igreja:

  1. A missão primordial da Igreja, conforme definida por Cristo, não é fazer discípulos de todas as nações, batizando e ensinando (Mateus 28:19-20), em vez de governar nações ou impor legislações específicas?
  2. A fusão entre os objetivos da Igreja e os objetivos do Estado, implícita na Teologia do Domínio, não ameaça a integridade profética da Igreja, comprometendo sua capacidade de denunciar a injustiça e a idolatria dentro de qualquer estrutura de poder?
  3. Como a Igreja, ao buscar o “domínio” político, pode evitar repetir os erros históricos das teocracias e das igrejas estatais, que frequentemente levaram à perseguição, à corrupção espiritual e à diluição do Evangelho?
  4. A estratégia de conquista cultural/política não desvia recursos, energia e foco da Igreja de sua missão essencialmente espiritual (adoração, discipulado, comunhão, serviço aos necessitados) para uma arena onde sua autoridade é, por definição bíblica, limitada e diferente?

IV. Ética, Poder e Minorias:

  1. Como a implementação das leis penais do Antigo Testamento (por exemplo, pena de morte para adultério, homossexualidade, blasfêmia) sob a Teologia do Domínio seria compatível com os princípios evangélicos de graça, perdão, redenção e o valor da vida humana criada à imagem de Deus, mesmo do pecador?
  2. Qual seria o status e os direitos de cidadãos não-cristãos (ateus, adeptos de outras religiões, LGBT+, etc.) em uma sociedade brasileira governada explicitamente sob os princípios da Teologia do Domínio? Isso não configura uma teocracia excludente?
  3. A busca pelo domínio político não inevitavelmente leva a alianças espúrias, concessões éticas e a corrupção do testemunho cristão em nome do “bem maior” do poder de influência?
  4. Como a Teologia do Domínio responde à crítica de que sua visão de poder e controle é fundamentalmente contrária ao espírito de serviço, humildade e amor ao inimigo ensinado por Jesus (Mateus 20:25-28, Mateus 5:43-48)?
  5. A ênfase no triunfo cultural e político não marginaliza ainda mais os pobres e oprimidos, focando na conquista de poder em vez de priorizar a opção preferencial pelos pobres, clara no ministério de Jesus e nas epístolas?

V. Contexto Brasileiro e Consequências Práticas:

  1. Como a Teologia do Domínio, com sua visão frequentemente eurocêntrica de “cultura cristã”, dialoga com a complexa realidade cultural, racial e religiosa plural do Brasil, marcada por sincretismos, religiões de matriz africana e tradições indígenas?
  2. Como essa teologia interpreta a violenta história de colonização e imposição religiosa no Brasil, que usou justificativas semelhantes de “domínio cristão”, à luz dos princípios do Evangelho de amor e respeito?
  3. A implementação da Teologia do Domínio no Brasil, um país com profundas desigualdades sociais, não tenderia a legitimar e perpetuar essas desigualdades ao sacralizar uma ordem social baseada em interpretações específicas da lei mosaica, potencialmente desconsiderando a justiça social?
  4. Como essa teologia evitaria se tornar uma ferramenta de legitimação teológica para projetos políticos autoritários, corruptos ou contrários aos direitos humanos fundamentais no cenário político brasileiro?
  5. A promessa de “domínio” e “bênção nacional” condicionada à implementação de sua agenda política não se assemelha perigosamente à teologia da prosperidade, substituindo a bênção individual pela coletiva, mas mantendo a lógica de barganha com Deus?

VI. Escatologia e Soberania Divina:

  1. A crença de que a Igreja deve e pode estabelecer o Reino de Deus na terra através de meios políticos não usurpa a ação exclusiva de Cristo, que retornará pessoalmente para estabelecer seu Reino eterno e perfeito (Apocalipse 19-22)?
  2. A Teologia do Domínio não incorre no erro do messianismo político, atribuindo à ação humana (mesmo “cristianizada”) a capacidade de realizar o que só o retorno glorioso de Cristo pode consumar?
  3. Como se concilia a visão otimista do progresso inevitável do domínio cristão com a realidade persistente do mal, do pecado e da resistência ao Evangelho, descritos como características da era presente até a Parusia?
  4. A obsessão com o controle da sociedade através do poder político não reflete uma falta de fé na soberania de Deus, que age na história de formas misteriosas e frequentemente contra as expectativas humanas de poder (1 Coríntios 1:27-29)?

VII. Crítica Profética e Autenticidade Evangélica:

  1. A Teologia do Domínio não representa, em sua essência, um retorno ao espírito do farisaísmo, que buscava justiça própria e controle religioso-social através da rigidez legal, contra o qual Jesus dirigiu suas críticas mais contundentes?
  2. Como essa teologia evita a idolatria do poder, da nação e da cultura, substituindo o Deus revelado em Jesus Cristo por projetos humanos de dominação?
  3. A linguagem de “conquista” e “domínio” não é intrinsecamente violenta e contrária ao caráter pacificador e reconciliador do ministério da reconciliação confiado à Igreja (2 Coríntios 5:18-20)?
  4. A redução da rica esperança escatológica cristã (novos céus e nova terra) a um projeto político-terreno de “cristianização” da sociedade brasileira atual não empobrece dramaticamente a visão bíblica do futuro?
  5. Se Jesus, ao ser tentado pelo diabo com “todos os reinos do mundo e a sua glória” (Mateus 4:8-9), rejeitou categoricamente esse caminho de poder político imediato como uma tentação satânica, como a Teologia do Domínio pode afirmar que esse mesmo caminho é agora a vontade de Deus para sua Igreja?

A análise crítica da Teologia do Domínio à luz das Escrituras e da realidade brasileira revela tensões profundas e aparentemente irresolúveis. As objeções hermenêuticas – particularmente a reconciliação da imposição da lei mosaica com a Nova Aliança em Cristo e a natureza “não deste mundo” do Reino proclamado por Jesus – desafiam a fundamentação bíblica. A busca pelo poder político e cultural parece inverter a lógica do Evangelho, centrada na cruz, no serviço e na prioridade do discipulado, arriscando a integridade profética da Igreja e repetindo erros históricos de fusão com o Estado. As implicações éticas, especialmente sobre minorias e a diversidade religiosa brasileira, sugerem o perigo de exclusão e legitimação dem desigualdades sob um manto teocrático. No contexto brasileiro, marcado por sincretismo, desigualdade e uma história de imposição religiosa violenta, o projeto reconstrucionista apresenta-se não apenas como uma leitura questionável da Escritura, mas como uma proposta potencialmente autoritária e contrária ao espírito de serviço, graça e amor ao próximo que caracteriza o ministério de Jesus. A tentação de conquistar “todos os reinos do mundo” pela via política, rejeitada por Cristo no deserto, permanece, segundo esta análise, uma tentação a ser evitada, não um mandato a ser abraçado pela Igreja. A esperança cristã escatológica reside não na construção de um reino terreno pela força da lei, mas na vinda soberana de Cristo, que estabelecerá novos céus e nova terra.

*Produtor Rural em Mato Grosso do Sul.

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