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Julio Pompeu: ‘Valores’

Julio Pompeu (*) –

Espanto. Era o que acometia quem ficava sabendo da separação de Virgínia e Macedo. Casal exemplar em tudo. Pareciam felizes juntos. Havia em seus carinhos e olhares cumplicidade, amizade, desejo. O que poderia ter dado errado? Traição era a aposta de quase todos, hipótese que era negada de forma veemente pelos dois, que pareciam até ofendidos com a mera insinuação de que seu ex-par pudesse ser capaz de uma traição.

Perguntada do porquê, Virgínia desconversava. Ou respondia de forma tão genérica que não respondia nada. “Aconteceu, só isso…”. Só para Amanda, e depois de muita insistência, Virgínia acabou confessando. “Foi a bolsa.” disse, exibindo uma bolsa de marca cara, símbolo de distinção. “É linda mesmo…”, disse Amanda, “… mas o que a bolsa tem a ver com sua separação?”. “Amiga, tentei de tudo. Todas as combinações. Mas não tinha jeito, Macedo não combinava com esta bolsa. Era ele ou ela. Os dois ao mesmo tempo, não poderia usar por aí. “.

Depois de muito tempo precioso procurando, Charles encontrou seu filho em casa. “Garoto, o Natal está chegando. O que você vai pedir para Papai Noel?”. Sem titubear, o menino disparou: “vou pedir um pai”. Charles assustou-se. Esperava muita coisa, mas não algo assim. Sempre comprava de tudo para o filho. Do melhor, do mais bonito, do mais novo, do mais legal, do mais caro. E agora ele queria um pai! Um pai!…

Ficou pensativo. Numa introspecção que lhe era incomum. Buscou conselho entre amigos e profissionais. Recebia uma dica aqui e outra acolá, mas nada lhe respondia à sua imensa angústia diante do desejo do filho. “Onde vou comprar um pai?”, perguntava-se insistentemente. Sempre acreditou, com fé quase religiosa, que seu dinheiro era capaz de comprar qualquer coisa em qualquer lugar, mas um pai? Onde se compra isso?

Doutor Nermal dizia com orgulho que era homem de uma palavra só. Direto e conciso, com ele não tinha lero lero e nem salamaleques. Deixava claro seus valores e seu pensamento. Um caráter imutável, incorruptível e altivo. Vestia-se de forma impecavelmente elegante e era pontualíssimo. Jamais chegava antes ou depois do minuto combinado. Chegava como que tivesse, do nada, aparecido ali, bem na hora. Foi sabendo de sua fama que Mefisto lhe interrogou.

No começo, Doutor Nermal estava um pouco incomodado. Mais pelo atraso de Mefisto que pelo interrogatório em si. Gente de sua estirpe, que costuma impor a si mesma valores tão rígidos, dificilmente é leniente com as faltas alheias e atraso. Para ele, era uma grande falta. Não se sabe se para compensar o atraso ou em respeito ao modo de ser do interrogado, Mefisto mal se sentou e foi logo disparando: “Doutor Nermal, o senhor fraudou ou não fraudou o balanço contábil de sua empresa?”.

Com a altivez de nascido na riqueza, foi direto na resposta: “claro que sim!”. Mefisto balançou a cabeça mostrando algum contentamento com a resposta. “Chegou a pensar, em algum momento, no quanto suas atitudes foram prejudiciais aos consumidores e fornecedores?”. Doutor Nermal deixou clara a irritação que a pergunta lhe causou, indignou-se: “que tipo de pergunta é essa? O que você pensa que eu sou? Alguém que desrespeita o dinheiro? Ou os investidores? Pois eu suborno, ameaço, mato, não poupo esforços pelo lucro. Eu jamais deixaria de conquistar dinheiro do jeito que for, seja lá contra a vida de quem for!”.

Mefisto estampou no rosto um largo sorriso e abriu-se para um abraço com ar de orgulho e admiração. “Seu caráter isento de dignidade e seu amor ao dinheiro acima de todos é comovente!”.

(*) Escritor e palestrante, professor de Ética do Departamento de Direito da UFES, ex-secretário de Direitos Humanos no ES.

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