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Julio Pompeu: ‘O pato’

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Julio Pompeu (*) –

Antecipou-se para pegar a maleta, de maneira a colocar-se logo atrás do chefe que caminhava rápido sala afora. Seguiu ostentando a simpatia que lhe era habitual e o orgulho de fazer o que fazia. Estava no centro do poder. Em meio à bajulação. Refletindo no penteado engomado o brilho dos flashes. Não era muita coisa. Mais um subalterno. Mas não um subalterno qualquer. O subalterno do homem. O preferido. O capaz de tudo. O que carregava a maleta do chefe.

Tinha a esperteza essencial para a sua função. Não para as atividades típicas da subalternância. Mas para aquelas que só ele faria. Que só a ele seriam confiadas. As que ninguém poderia saber. E era justamente a sua esperteza que lhe fez pato. Num misto de autoconfiança e fé no poder do chefe poderoso, foi descuidado. Desprotegeu-se na certeza de que seria protegido pelo chefe. Não sabia ainda da sina de todo subalterno como ele. Não compreendia bem as engrenagens das tramas palacianas e de como aquelas engrenagens podiam ser rápidas e eficientes para sacrificar gente como ele ao menor sinal de perigo para o chefe.

Do imoral ao ilícito, lá estava a sombra de sua ação. Os benefícios das imoralidades e ilicitudes foram para muitos, inclusive para ele mesmo, mas principalmente para o chefe. Achou que se algo desse errado haveria proteção. Acreditou que aquela conversa de que um militar não abandona outro no campo de batalha o tornava especial. Que os aliados que via, sistematicamente, sendo abandonados e traídos nada tinham a ver com ele. A sua relação com o chefe era coisa diferente. Coisa de irmão de farda. Coisa de quem tem cumplicidade afetiva.

Quando foi pego, ligou para o chefe. Era um pedido de socorro. “Aqui não”, ouviu envergonhado. Sabia que não se falava das coisas que só ele fazia pelo celular. Era o medo. No fundo de sua alma, sabia que para o chefe ele era alguém descartável, mas não ousava confessar para si mesmo aquela verdade.

Encontraram-se. “Estão investigando”, explicou ao chefe como alguém que quer alertá-lo de um perigo iminente. O chefe ouviu como se só ele próprio corresse perigo. E foi pensando em si mesmo que respondeu “deixe comigo”.

Foi preso pouco depois. Estava há dias sem falar com o chefe. Não era mais atendido. As notícias que tinha lhe davam conta do abandono. Estava, definitivamente, encrencado e sozinho. Sua imagem ganhou as telas de TVs, sites e jornais. Viveu os últimos três anos como sombra, ocultado pelo resplendor do chefe. Agora, sob os holofotes, fugia das luzes em direção ao abrigo das sombras. E foi naquela solidão que o último fio de ilusão se partiu e, tristemente, percebeu-se pato. O pato da história. Um idiota que fez de tudo e agora não tinha nada.

Foi com raiva que tentou, por um amigo, falar ao chefe. Desabafou ao telefone sua mágoa. Justificou-se em busca de alguma solidariedade. “Fui obrigado a delatar…”. À polícia, antes, dissera que fora obrigado a fazer tudo o que fez. O pato é sempre alguém obrigado a fazer algo. Nunca age por si mesmo. Alguém que comete, criminosamente, crime que não é seu. Que não é para si. Em troca das migalhas de um benefício. Não é senhor de si mesmo. É um pato. Um pato subalterno. Um mísero pato. Só pato.

(*) Escritor e palestrante, professor de Ética do Departamento de Direito da UFES, ex-secretário de Direitos Humanos no ES.

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