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Julio Pompeu: ‘Acidentes’

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Julio Pompeu (*) –

O ronco do motor não é o mesmo quando se está dentro do carro. Fora, estronda, chama a atenção.  Dentro, treme, relaxa. Fernando gosta do seu carrão. Também gosta de beber. E de relaxar saindo de carrão para beber. Bebeu demais. Correu demais. Com Fernando, tudo é demais. Bateu. Matou. Machucou. Fugiu. Foi um acidente. Mamãe socorreu na fuga. Foi-se embora, deixando para trás morto e feridos. Os policiais deixaram. Sem flagrante. Sem constrangimento. Só algumas perguntas. Coisa da papelada chata que têm que preencher. “É o procedimento”, justifica para a mãe sóbria e impaciente por ter a fuga do filho retardada pela burocracia. Fugiu. Foi só um acidente.

No calçadão da praia a concorrência é grande. Valdir chama a clientela no grito. Aproveita-se da voz forte para anunciar água de coco, cerveja, refrigerante e água. Sempre nessa ordem. O dia todo. Todo dia. Acidentalmente, gritou perto demais do ouvido de um policial. No susto, olhou feio para Valdir. “Desculpa aí!”, apressou-se Valdir em dizer. O policial pediu documentos, imaginando uma forma de não deixar aquele grito por isso mesmo. Descobriu que Valdir já foi preso. E, uma vez preso, sempre preso. “Na próxima, eu te quebro!”, disse o policial. A próxima foi logo no dia seguinte. Valdir tomou três tiros. Por uma denúncia anônima foram, exatamente, para a casa de Valdir. Atiraram, exatamente, em Valdir. Não podia ser um acidente. Pousou-se uma arma na mão morta de Valdir. Tudo resolvido. Sem sustos, sem incidentes.

Há quem prefira viver na rua a abrigar-se em qualquer lugar. Cama é coisa boa. Teto também. Mas na violência do abandono nas ruas, há quem também sinta alguma liberdade. Marieta foi para a rua fugida do marido violento. Não tinha mais para onde ir. Nem do que viver. Entre a violência certa de casa e a incerta da rua, preferiu a rua. Viu-se livre. Não saberia dizer porque naquele dia aceitou a oferta e embarcou na velha kombi da prefeitura para o albergue. Ele era feio. Mais feio que a rua. Tudo que se oferece a quem mora na rua costuma ser assim, feio. Coisa descartada. Para a gente que não se quer, dá-se o que não mais se quer. Marietta foi acordada com o calor nos pés. Abriu os olhos e viu o clarão do fogo consumindo com inclemência o quartículo que lhe cabia. Pensou em fugir mas não tinha pra onde ir. Pensou em sobreviver, mas não tinha como. Morreu como outros 29 naquele albergue. Lá, não tinha licença. Nem segurança contra incêndio. Mas funcionava com dinheiro público. Para gente de rua, as burocracias e proteções não são as mesmas. A polícia já sabe, “foi um acidente”.

Guto é alto e forte. Chama a atenção por onde passa. Nem sempre uma atenção boa. Sua pele escura cobrindo seu corpanzil assusta gente que não costuma ver gente preta como gente. Uma senhorinha branca assustou-se com Guto andando na calçada. Chamou o segurança, que chamou a polícia, que parou Guto três quarteirões à frente. Chegaram gritando. Armas apontadas para o perigoso Guto. “Cadê?”. “Cadê o quê?”. “Cadê o que você pegou, vagabundo”. Guto só tinha com ele o que era dele, além da cor que também era sua. Foi preso e levado para a delegacia. Sem quem o acusasse por lá e sem saber do que o acusar, soltaram. Mas não sem lhe passar um sermão. A prisão dele virou notícia. Preso por nada. Aos jornalistas, sem ter o que dizer, os políticos justificaram: “foi um acidente, um lamentável acidente”.

(*) Escritor e palestrante, professor de Ética do Departamento de Direito da UFES, ex-secretário de Direitos Humanos no ES.

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