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‘Juízes e promotores não podem assumir posição panfletária’, diz Abel Gomes

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O procurador Deltan Dallagnol, ex-chefe da “lava jato” em Curitiba, disse no Twitter em 2019 que, se Renan Calheiros (MDB) vencesse a eleição para presidente do Senado, dificilmente o Brasil veria a aprovação de uma reforma contra a corrupção. “[Renan] tem contra si várias investigações por corrupção e lavagem de dinheiro. Muitos senadores podem votar nele escondido, mas não tem coragem de votar na luz do dia”. O juiz da franquia fluminense da operação, Marcelo Bretas, é outro operador do Direito que não faz questão de manter imaculado o manto de sua imparcialidade. Por exemplo, já participou de eventos públicos ao lado do presidente Jair Bolsonaro, do ex-governador do Rio de Janeiro Wilson Witzel (PSC) e do ex-prefeito da capital fluminense Marcelo Crivella (Republicanos), publicando fotos ao lado deles em suas redes sociais.

Para o relator dos processos da “lava jato” no Tribunal Regional Federal da 2ª Região, desembargador Abel Gomes, magistrados e integrantes do Ministério Público não podem nem criticar nem apoiar políticos publicamente.

“Magistrados e membros do MP não podem assumir posição pública de natureza panfletária, instigadora, ou de qualquer aspecto que, por meio de crítica meramente político-ideológica a uns, na verdade assumem a pretensão de enaltecer a outros políticos”, opina.

Mensagens de Telegram obtidas por hackers mostram que o ex-juiz Sergio Moro tinha uma relação bem próxima com procuradores, chegando a ordenar atos da “lava jato”. Segundo Gomes, os limites das relações entre magistrados e integrantes do MP são os mesmos que devem valer para as relações entre magistrados, de um lado, e advogados e procuradores de órgãos públicos, de outro. “Ou seja, tratamento com urbanidade e atendimento pronto a todos, e sem imposição de condição não justificada, sempre que qualquer deles procure o juiz para trazer questões jurídicas que reclamem ou possibilitem soluções de urgência”.

Há a discussão, pendente de decisão do Supremo Tribunal Federal, se as mensagens hackeadas podem ser usadas em processos. O desembargador avalia que comunicações obtidas por esse meio são provas ilícitas. Portanto, só podem ser utilizadas para beneficiar alguém que está sendo investigado, processado ou foi condenado por um crime.

Abel Gomes se aposentará no dia 1º de junho, 13 anos antes da compulsória. Ele declara que irá buscar outros caminhos e não descarta a possibilidade de advogar.

Em entrevista à ConJur, o desembargador do TRF-2 ainda afirmou que não se deve criar leis penais em momentos de forte emoção, ressaltou que o grande número de prisões provisórias decorre da alta demanda da Justiça criminal e disse que penas mais altas não reduzem a criminalidade.

Leia a entrevista:

ConJur — Por que o senhor quis se aposentar 13 anos antes da compulsória?
Abel Gomes —
 A vida é uma linha cheia de rituais de passagem. Sempre a vi assim e, num determinado ponto da carreira, passei a ter em mente que não ficaria até a compulsória, e que, reunindo o tempo suficiente de serviço, me prepararia para descortinar outros caminhos e outras experiências.

ConJur — Conversas telefônicas e mensagens de texto obtidas ilegalmente podem ser usadas em processos?
Abel Gomes —
 Não podem. O veda o artigo 5º, LVI, da Constituição. Para serem utilizadas, essas captações carecem de ordem judicial emitida em devido processo legal. Apenas quando alguém esteja em vias de ser processado, acusado ou já condenado por algo que não fez, e se descobrindo por meio de uma comunicação ilicitamente obtida que é inocente, se poderia cogitar de sua utilização. Mesmo assim, ela teria o limite de apenas beneficiar a pessoa equivocadamente acusada, mas em hipótese alguma poderia trazer repercussões para o sujeito que, através da prova ilicitamente obtida, eventualmente restasse apontado como o autor do crime. Para acusar ou condenar alguém em qualquer sanção, uma prova ilícita não pode ter um valor maior que as provas que seguem ritos processuais legais.

ConJur — Qual é o limite nas relações entre integrantes do Ministério Público e magistrados?
Abel Gomes —
 Os limites são os mesmos que devem valer para as relações entre magistrados e advogados e procuradores de órgãos públicos. Estão bem traçados no artigo 35, IV, da Lei Orgânica da Magistratura (Lei Complementar 35/1979). Ou seja, tratamento com urbanidade e atendimento pronto a todos, e sem imposição de condição não justificada, sempre que qualquer deles procure o juiz para trazer questões jurídicas que reclamem ou possibilitem soluções de urgência. Isto está assim mesmo escrito na Lei Orgânica da Magistratura.

ConJur — Magistrados e integrantes do MP podem divulgar apoio público a políticos?
Abel Gomes —
 Não. Inclusive não devem fazê-lo nem implicitamente. Em países do common law, juízes até passam por processos eleitorais, em alguns casos, para serem investidos na função judicante. No Brasil, o que mais se aproxima disso são as indicações para cortes superiores, que partem do presidente da República e são submetidas ao Senado. É a forma de investidura que mais aproxima o juiz do processo político. Por isso acho que, nesses casos, mais ainda, devem esses juízes evitar transparecer algum tipo de simpatia ou apoio a políticos.

ConJur — Magistrados e integrantes do MP podem criticar publicamente políticos?
Abel Gomes —
 A crítica por parte de magistrados e membros do MP, mesmo a políticos enquanto tal ou relacionada a decisões ou diretrizes políticas, só pode ser feita em três hipóteses, segundo a Constituição e a Lei Orgânica da Magistratura: no processo e nos julgamentos orais quando necessária à fundamentação de decisões versando sobre questões decorrentes de políticas públicas que tenham sido judicializadas; quando relacionadas a posturas político-eleitorais judicializadas (propaganda política antecipada ou vedada, abuso de poder etc.); ou em obras de cunho inequivocamente acadêmico ou inquestionavelmente doutrinárias. Magistrados e membros do MP não podem assumir posição pública de natureza panfletária, instigadora, ou de qualquer aspecto que, por meio de crítica meramente político-ideológica a uns, na verdade assumem a pretensão de enaltecer a outros políticos. Obviamente que, como cidadãos, possuem suas convicções políticas, o que não os impede de manifestá-las entre amigos.

ConJur — Muitos processos da “lava jato” foram originados em delações premiadas. Como avalia o impacto da delação premiada no Brasil?
Abel Gomes —
 A bem da verdade, ela não é novidade. Já vem sendo inserida nas legislações nacionais desde a Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072/1990). É uma realidade no mundo todo. É um instrumento de defesa que pode repercutir em diminuição de pena e até perdão. Rumamos para processos consensuais, mesmo em âmbito penal. Veja o acordo de não persecução penal. A colaboração impactou porque por meio dela foram atingidos crimes de corrupção atribuídos a políticos de destaque e empresários poderosos e históricos. Mas não afetou todo o empresariado nem toda classe política. O que não pode é utilizar a colaboração sem o cotejo necessário com outros elementos de provas capazes de corroborar as declarações do colaborador.

ConJur — Há um excesso de prisões preventivas no Brasil?
Abel Gomes —
 Há muitas prisões preventivas e medidas cautelares restritivas de direitos também. Mas o que há antes disso no Brasil é um excesso de demanda à Justiça penal. E o que é pior, uma demanda em crimes graves, praticados em situações muitas vezes bastante graves. A gravidade de um crime se mede por dois critérios: o legal, ligado ao bem da vida que o crime afeta, o que corresponde a penas mais altas também na lei (exemplos do latrocínio, estupro e homicídio); e o do fato concreto, ligado à forma, ao modo, aos meios, circunstâncias, consequências e qualidade das vítimas contra quem são praticados, além da reiteração e periculosidade do criminoso. Não há como o jurista ignorar essa questão da gravidade concreta, porque está na lei, na dogmática jurídico-penal, e na realidade das coisas. Ainda por cima, não tem cabimento negar que temos uma sociedade com alto grau de violência física, pessoal, e outras formas de violência social bastante perceptíveis, com projeções de insistência e persistência em diversas práticas delituosas bastante lesivas, o que evidencia um déficit de inibição pela atuação e eficácia do sistema penal, com notório encorajamento à replicação e repetição de mais práticas criminosas. Prisões e medidas cautelares restritivas de direitos estão surgindo nesse contexto.

ConJur — Em muitos casos, juízes passam a administrar bens apreendidos em operações. Isso é função do Judiciário? Deveria haver uma regulamentação mais detalhada sobre o assunto?
Abel Gomes —
 É o texto legal: artigos 125 a 144-A do Código de Processo Penal. O código estabelece que presentes pressupostos e circunstâncias sejam determinados sequestros e arrestos e também que o juiz deve decidir como isso se mantém, como será devolvido ou alienado, às vezes antecipadamente. O que fazer? A verdade é que a Justiça penal parece não estar preparada e não querer se preparar para lidar com crimes que envolvam bens e riqueza. A varas criminais não possuem estrutura própria para lidar com administração de bens realmente, e não há previsão legal para o juiz criminal indicar um síndico para isso. Nesse caso dos bens, está o juiz criminal entre o dever de aplicar a lei e a carência de condições e estrutura que o possibilitem fazer de forma ótima. Então, se os juízes não podem fazer o ótimo, fazem o melhor.

ConJur — Como o senhor avalia a “lei anticrime” (Lei 13.964/2019)?
Abel Gomes —
 Acho que os últimos quatro anos não seriam os melhores para se editar leis penais. Muita emoção e pouca razão nisso tudo. Ele [o PL] começou como “Projeto Moro”, depois se disse que era o Projeto Alexandre de Moraes, entrou de um jeito no Congresso, foi recortado, vetado parcialmente, teve vetos superados, e um artigo suspenso pelo ministro Luiz Fux. Conturbado, não?

ConJur — Penas mais altas diminuem crimes?
Abel Gomes —
 Penas não diminuem crimes. Sanções civis não diminuem inadimplências, não impedem violações de direitos de vizinhança, de família, contratual em geral etc. O problema é outro. Mas o que fazer? Abrimos mão do direito por isso? Se não abrirmos, não esqueçamos que o Direito nada é sem a sanção; o [jurista italiano Giorgio] Del Vecchio muito bem fala sobre isso. Qualquer sanção responde a uma violação da lei. Penas criminais não recuperam nem ressocializam ninguém. Elas punem com vista a responder a um dano, uma injúria, um mal ou violência sofrida por algum cidadão como nós. Elas estão nas mãos do Estado também para evitar que haja vingança privada, esta sim muito pior e sem controle. Isto está numa parte do [jurista italiano Luigi] Ferrajoli que poucos citam. Mesmo assim, nos arredores dos melhores lugares de nossas cidades, o que há é aplicação de penas privadas, justiças particulares, punições informais. Vira e mexe há um vídeo mostrando isso correndo em mensagens de WhatsApp que recebo de amigos policiais. Estamos numa encruzilhada perigosa. O Estado está visivelmente impotente frente a isso. Precisamos de educação, ensino público fundamental integral e de qualidade. Precisamos de população próspera, daí virá o prazer de viver. Daí tudo pode melhorar, e muito.

ConJur — O Projeto de Lei do Senado 5.852/2019 pretende alterar o Código de Processo Penal para estabelecer a obrigatoriedade de o Ministério Público buscar a verdade dos fatos. O objetivo é fazer com que o Ministério Público alargue a investigação a todos os fatos pertinentes para a determinação da responsabilidade criminal, independentemente de interessarem à acusação ou à defesa. Dessa forma, também deveria incluir no processo provas que favorecessem a defesa. Como avalia esse projeto?
Abel Gomes —
 Não conheço. Até procurei o texto na internet e tive dificuldade em encontrar. Mas como eu disse, tratando-se de um projeto de lei penal de 2019, já não me parece algo muito bom. Pelo que você ainda me diz, parece que ele quer antecipar a função judicial, colocando-a na esfera de atribuição do Ministério Público. É o que me parece. Mas uma antecipação de função judicial de forma proativa, nas mãos de uma figura que histórica e tradicionalmente foi pensada no mundo inteiro para promover no âmbito penal a persecução da prática de crimes e sua autoria, dentro do império da lei e sob sindicância do Judiciário, claro! O Ministério Público é uma das garantias conquistadas pela civilização. Possibilita a defesa da sociedade através da ação penal pública na área penal e diferencia a figura de quem acusa da de quem julga. Me parece que há uma desnaturação da figura.

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