Reinaldo de Mattos Corrêa*
A Teologia do Domínio (TD), também conhecida como Dominionismo ou Reconstrucionismo Cristão, ergue-se como uma fortaleza teológica cujos alicerces repousam sobre areia movediça quando confrontados com as rochas fundamentais da fé protestante. É uma construção que, embora utilize linguagem bíblica, distorce radicalmente a mensagem do Evangelho e a visão protestante da relação entre a Igreja, o Estado e o mundo. Sua incompatibilidade com o Protestantismo histórico não é mera divergência política; é um abismo teológico que toca o cerne da identidade reformada.
As Rochas Protestantes vs. Os Alicerces da Dominação:
- Sola Scriptura vs. Reinterpretação Forçada: a TD frequentemente força narrativas bíblicas (especialmente do Antigo Testamento, como as leis mosaicas e promessas a Israel) sobre a realidade contemporânea de forma literalista e anacrônica. O protestantismo, fiel ao Sola Scriptura, busca interpretar a Escritura em seu contexto histórico-gramatical, reconhecendo a natureza tipológica e o cumprimento em Cristo. Impingir estruturas teocráticas veterotestamentárias à sociedade moderna é uma violação deste princípio hermenêutico. A autoridade última não é uma agenda política derivada de uma leitura seletiva, mas a Palavra de Deus interpretada com fidelidade e sob a iluminação do Espírito Santo;
- Sacerdócio Universal dos Crentes vs. Hierarquia Espiritual Coercitiva: o protestantismo rompeu com a ideia de que uma classe sacerdotal mediadora detinha acesso exclusivo a Deus ou autoridade temporal derivada. O Sacerdócio Universal afirma que todo crente tem acesso direto a Deus através de Cristo e é chamado ao serviço no mundo. A TD, ao buscar estabelecer um “governo cristão” ou influência dominante na cultura e política, cria inevitavelmente estruturas de poder e hierarquias que centralizam a autoridade espiritual em grupos específicos que se autodenominam intérpretes legítimos da “lei de Deus” para a sociedade. Isso nega o princípio radical da igualdade diante da cruz e abre caminho para o autoritarismo espiritual disfarçado de piedade;
- Os Dois Reinos vs. Fusão das Esferas: uma contribuição crucial da Reforma (especialmente em Lutero e Calvino, com nuances) foi a distinção entre o Reino de Deus (espiritual, governado por Cristo por meio da Palavra e do Espírito na Igreja) e o Reino Secular (governado pela autoridade civil estabelecida por Deus para manter a ordem e a justiça, mas distinto da Igreja). A TD busca uma fusão perigosa, onde a Igreja ou “cristãos iluminados” devem governar diretamente ou impor suas leis específicas ao Estado. Isso não apenas ignora a natureza “caída” e provisória de todas as instituições humanas, mas também confunde a missão primária da Igreja (proclamar o Evangelho e fazer discípulos) com a tarefa do Estado (governar a sociedade plural). O protestantismo clássico defende a liberdade de consciência e o direito de evangelização livre, não a imposição legal da fé;
- A Cruz como Centro vs. O Poder como Meta: o coração da fé protestante é a Cruz de Cristo – o sacrifício expiatório, a vitória sobre o pecado e a morte, oferecida graciosamente. A vida cristã é marcada pelo discipulado, serviço, sofrimento e esperança escatológica no retorno de Cristo. A TD, porém, muitas vezes desloca o foco para o poder temporal e o controle cultural como sinais primários da bênção de Deus e do “avanço do Reino”. Isso inverte a lógica do Evangelho, onde o poder se aperfeiçoa na fraqueza (2 Cor 12:9) e o Reino vem não por espada, mas pelo Espírito (Zac 4:6). Buscar o domínio político-social como meta central é uma secularização da fé e uma negação prática da suficiência de Cristo e da esperança na consumação futura.
Como os Protestantes Brasileiros Podem Contribuir para o Declínio da Teologia do Domínio:
O Brasil, com sua vibrante e diversa paisagem protestante/evangélica, infelizmente não é imune aos apelos sedutores da TD, especialmente em segmentos neopentecostais e em movimentos políticos evangélicos. A resistência e contribuição para seu declínio devem ser ativas e fundamentadas:
- Recuperação da Fé Centrada no Evangelho: o antídoto mais poderoso é uma redescoberta apaixonada e proclamação fiel do Evangelho bíblico: Sola Gratia, Sola Fide, Solus Christus. Enfatizar a graça imerecida, a justificação pela fé somente em Cristo, a centralidade de sua obra na cruz e ressurreição, e a esperança escatológica. Quando Cristo e a obra salvadora são o centro, as agendas de poder perdem seu fascínio. Pregadores, professores e líderes leigos devem ser corajosos em confrontar qualquer ensino que diminua Cristo para elevar projetos humanos de poder;
- Educação Teológica Robustecida e Acessível: combater a TD exige uma compreensão sólida da teologia protestante histórica, hermenêutica bíblica e ética cristã. Igrejas, seminários e instituições de ensino precisam investir massivamente na formação teológica de pastores e leigos, tornando-a acessível e relevante. Estudos bíblicos profundos, cursos sobre a Reforma, discussões sobre fé e política à luz das Escrituras e da tradição reformada são essenciais para imunizar as comunidades contra interpretações distorcidas e agendas dominionistas;
- Prática Radical do Serviço e Amor ao Próximo: a resposta cristã à sociedade não é a tomada de poder, mas o serviço sacrificial. Protestantes devem ser conhecidos por seu amor concreto aos pobres, marginalizados, doentes e encarcerados (Mateus 25:31-46); por sua defesa intransigente da justiça e da dignidade humana; por sua integridade nos negócios; por sua contribuição positiva para a cultura por meio das artes, ciências e educação. Este testemunho prático de amor e justiça, desvinculado de projetos de controle, desarma a retórica da TD e demonstra o verdadeiro poder transformador do Evangelho;
- Defesa Vigorosa do Estado Laico e da Liberdade Religiosa: engajar-se de forma clara e consistente na defesa do Estado Laico não como inimigo, mas como garantia da liberdade de consciência e da pluralidade religiosa inerente a uma sociedade democrática. Protestantes históricos entenderam isso como uma conquista preciosa. Defender a laicidade significa proteger o direito de todas as religiões (incluindo as minoritárias e as de matriz africana, frequentemente alvos da TD) existirem e praticarem a fé livremente, sem interferência estatal baseada em dogmas específicos. É também proteger a própria igreja da corrupção que vem da busca do poder político;
- Ecumenismo Crítico e Diálogo Fraterno: estabelecer diálogos sinceros e fraternos dentro do espectro protestante/evangélico e com outras tradições cristãs. Expor com clareza bíblica e teológica, mas com amor cristão, os perigos e incompatibilidades da TD. Unir vozes em defesa de princípios comuns como a centralidade de Cristo, a autoridade das Escrituras corretamente interpretadas, a liberdade religiosa e a primazia da missão espiritual da igreja. A fragmentação protestante beneficia a TD; a união em torno de fundamentos comuns a enfraquece;
- Discernimento Político Engajado, não Partidário: encorajar os fiéis a participarem ativamente da vida política como cidadãos responsáveis, votando, discutindo, cobrando ética. Porém, rejeitar veementemente a instrumentalização partidária dos púlpitos, a identificação do “Reino de Deus” com projetos ou partidos específicos, e a promessa de bênçãos divinas condicionadas ao voto em determinados candidatos. O discernimento político deve ser guiado por valores bíblicos universais (justiça, verdade, defesa dos fracos) e não por agendas dominionistas disfarçadas.
Conclusão:
A Teologia do Domínio é um desvio perigoso que ameaça a essência do testemunho protestante no Brasil. Ela substitui a cruz pelo cetro, o serviço pelo controle, a graça pelo legalismo, e a esperança escatológica por um triunfalismo terreno ilusório. A resposta protestante não é o silêncio ou a acomodação, mas um retorno vigoroso às Solas da Reforma, vividas com integridade e coragem. É por meio da fé centrada em Cristo, uma compreensão bíblica fiel, um serviço amoroso e desinteressado, uma defesa intransigente da liberdade e da justiça, e uma educação teológica sólida que os protestantes brasileiros podem, movidos pelo Espírito, contribuir decisivamente para expor a incompatibilidade da TD e acelerar seu declínio. Que a Igreja no Brasil seja conhecida não pelo poder que almeja conquistar, mas pelo amor que se dispõe a dar, refletindo assim o verdadeiro domínio de Cristo: o domínio do servo que lavou os pés dos discípulos e deu sua vida pela redenção do mundo. Soli Deo Gloria.
*Produtor Rural em Mato Grosso do Sul.