Desde 1968 - Ano 56

28.3 C
Dourados

Desde 1968 - Ano 57

InícioColunistaEntre o tempo, o sentido e a formação intelectual: Por que nenhuma...

Entre o tempo, o sentido e a formação intelectual: Por que nenhuma graduação em história é legítima sem Filosofia?

Reinaldo de Mattos Corrêa (*) –

Se no primeiro momento tornou-se necessário demonstrar que a História, privada da Filosofia, perde o chão que a sustenta, agora impõe-se um passo adicional — menos confortável, porém inevitável: a defesa institucional dessa unidade como princípio formativo, e não como escolha opcional. Não se trata de preferência pedagógica, mas de coerência epistemológica.

Toda instituição que oferece graduação em História sem oferecer, de modo concomitante, a graduação em Filosofia, forma técnicos do passado, não intérpretes do tempo.

I. O Problema Não é Interdisciplinar — É Ontológico

Costuma-se dizer que História e Filosofia são “áreas afins” ou “complementares”. Essa formulação já revela o erro. Elas não são afins; são estruturalmente interdependentes. A História investiga acontecimentos no tempo; a Filosofia investiga as condições de possibilidade do tempo, do sentido, da verdade e da interpretação. Separá-las equivale a ensinar anatomia sem fisiologia: o corpo pode ser descrito, mas não compreendido.

Uma graduação em História que não convive institucionalmente com a Filosofia transmite, ainda que silenciosamente, uma tese ontológica empobrecida: a de que os fatos existem independentemente de categorias de sentido, valor e inteligibilidade. Essa tese não é neutra — ela é filosoficamente ingênua.

II. A Formação do Historiador Exige Consciência dos Próprios Pressupostos

Todo historiador opera com conceitos como causalidade, evidência, verdade, tempo, sujeito, estrutura e narrativa. Nenhum deles é histórico em sua origem; todos são filosóficos. Quando a formação filosófica não é sistemática, esses conceitos não desaparecem — eles apenas se tornam inconscientes.

O resultado é um profissional capaz de manejar fontes, mas incapaz de responder por que considera uma fonte legítima; capaz de construir narrativas, mas incapaz de justificar os critérios que as tornam plausíveis; capaz de criticar ideologias alheias, mas cego às próprias. Uma História sem Filosofia não é menos ideológica — é apenas menos autoconsciente.

III. A Ilusão do Método como Substituto do Pensamento

Em muitas instituições, tenta-se compensar a ausência da Filosofia com disciplinas metodológicas. O método, porém, não substitui a reflexão filosófica; ele a pressupõe. Todo método já carrega uma concepção implícita de verdade, objetividade e racionalidade. Ensinar método sem Filosofia é ensinar a operar instrumentos sem compreender os princípios que os tornam válidos.

Essa ilusão metodológica gera uma geração de historiadores que confunde rigor com repetição de procedimentos, e crítica com alinhamento teórico prévio. A Filosofia não serve para “ornamentar” a História, mas para impedir que o método se converta em dogma.

IV. Por Que a Coexistência Institucional é Inegociável

Não basta oferecer disciplinas isoladas de Filosofia dentro do curso de História. Isso produz um contato superficial e funcionalizado. A presença de uma graduação plena em Filosofia na mesma instituição cria um ecossistema intelectual, onde a reflexão ontológica, ética e epistemológica não é acessória, mas viva, disputada, aprofundada.

A convivência institucional garante: circulação real de debates conceituais; formação de historiadores capazes de dialogar com problemas filosóficos de fundo; resistência ao empobrecimento tecnocrático da ciência histórica; proteção contra usos políticos simplificadores do passado.

Onde não há Filosofia institucionalmente forte, a História tende a ser capturada — ora pelo moralismo imediato, ora pelo positivismo tardio, ora por agendas externas travestidas de neutralidade.

V. Uma Questão Civilizacional, Não Corporativa

Defender que toda instituição com graduação em História ofereça também graduação em Filosofia não é defesa corporativa de área. É defesa de um padrão civilizacional mínimo de pensamento. Sociedades que rompem o vínculo entre narrativa histórica e reflexão filosófica produzem memória sem crítica, identidade sem exame e futuro sem imaginação.

A Filosofia lembra à História que o passado não é apenas aquilo que ocorreu, mas aquilo que continua a nos interpelar. A História lembra à Filosofia que o pensamento não flutua no vazio, mas nasce de condições concretas e conflitos reais. Separadas, ambas empobrecem; juntas, tornam-se forças de esclarecimento.

VI. Conclusão: Uma Exigência de Coerência Intelectual

Por isso, a tese final deve ser dita sem eufemismos: não deveria existir graduação em História onde não exista graduação em Filosofia. Onde isso ocorre, não se forma plenamente nem o historiador, nem o cidadão, nem o intérprete do tempo.

A História sem Filosofia perde o chão. A Filosofia sem História perde o mundo. E a universidade que aceita essa cisão abdica silenciosamente de sua missão mais profunda: formar consciência, e não apenas profissionais.

*Produtor Rural em Mato Grosso do Sul.

Primeiro artigo desta série:

- Publicidade -

ENQUETE

MAIS LIDAS