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Elairton Gelen – ‘Uma carta do céu’

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Elairton Gehlen – escritor 

(Carta de um advogado que morreu e está no Céu, onde cada profissional deve passar um longo período de tempo convivendo exclusivamente com seus colegas de profissão) 

Caros colegas advogados, aliás, doutores advogados, que é assim que gostais de ser tratados, mesmo que a maioria de nós jamais tenha sentado nossas doutas bundas num curso de mestrado, quiçá doutorado. Me desculpem o palavreado um pouco chulo, mas aqui onde me encontro agora, de nada adiantam expressões em latim ou palavras difíceis de serem compreendidas, o Juiz, Justo Juiz, diga-se de passagem, coisa rara por aí também, prefere a verdade demonstrada com simplicidade e pratica sempre a justiça, outra coisa rara nesse mundo dos vivos. Não quero me alongar nas iniciais, mas dizer que esse mundo onde estais agora é dos vivos chega a beirar o ridículo, daqui se pode ver a morte sempre presente em vosso meio, aqui, sim a vida é plena! 

Vos escrevo esta missiva para dizer que estou bem aqui e para que tenhais esperança, pois mesmo sendo pouquíssimos os que passam pela porta estreita, não é impossível que um camelo passe pelo fundo de uma agulha. Mas, não se iludam, mesmo tendo o privilégio dos poucos que advogam no Reino, aqui ainda não é o Céu dos Céus. Neste lugar, cada categoria deve passar um longo tempo de purificação, convivendo exclusivamente com seus colegas de profissão, então, desde que cheguei, exatamente no dia 2 de abril de 2005, tenho me relacionado somente com advogados, todos salvos, claro, mesmo assim não tem sido fácil. Parece que nossa profissão é a essência da vaidade. Aqui, ninguém pode ser chamado de doutor e isso é um choque até para os mais Santos dos jurisconsultos. 

Há uma história que até aqui chegou, trazida pelos anjos correspondentes vindos daí da Terra, que diz que quando o Papa João Paulo II morreu e se apresentou na entrada celestial, São Pedro pediu-lhe um pouco de paciência, pois havia acabado de chegar ao Céu um advogado que teria a preferência. O Papa teria argumentado que fora chefe da igreja e que mesmo em vida era considerado Santo. São Pedro teria dado duas leves batidas no ombro e informado que Papas já haviam vários no Céu, mas advogados, bem, este que ali estava às portas do Paraíso, este seria o primeiro! De fato, o ocorrido se deu e, coincidentemente o advogado era eu mesmo. Mas, necessário se faz uma pequena correção, mesmo tendo a preferência sobre o Santo Padre, não é bem verdade que eu tenha sido o primeiro advogado aqui onde se vive eternamente, mal entrei e um anjo me encaminhou para o escritório de advocacia do Céu, onde haviam poucas pessoas, trajes celestiais e uma auréola sobre a cabeça,  “estes são todos os advogados” disse e foi embora. 

Me desculpem ter tomado vosso precioso tempo com essa história do Papa, mas é que aqui temos tanto tempo disponível que vocês nem conseguem imaginar! Os prazos dos processos são determinados pela data da morte do réu. Não há outro prazo, até essa data o réu pode receber o perdão gratuita e voluntariamente, não se fazem apelações, não há recursos, nada. Eu sei, muitos de vocês diriam: Então, como vamos ganhar dinheiro? Lamento informar, mas esse jeito de fazer com que o processo se prolongue infinitamente, é um jeito estúpido de ganhar dinheiro. Cada vez que você faz isso, você está produzindo prova contra ti mesmo. Daqui se pode ver tudo, agora mesmo estou vendo um conluio entre um advogado do exequente e outro do executado, combinando como fazer para prorrogar o prazo do julgamento e tirar o máximo de dinheiro de ambas as partes! 

Eu morri em 2 de abril de 2005. Nestes dezesseis anos em que estou advogando pelas causas celestiais não achei um justo sequer. Então, caros colegas militantes do direito, chega de se arvorar pelos tribunais cheios de razão e superioridade, a grande verdade é que os que mais se orgulham, mais serão humilhados! Nesta década e meia pude fazer uma pesquisa que talvez ajude a compreender os fatos. Escolhi uma cidade, aleatoriamente e verifiquei o julgamento final, esse do Justo Juiz, em duzentos processos em que o advogado e o cliente já haviam morrido. Acreditem, apenas um advogado foi admitido ao escritório celestial e aqui está trabalhando há trinta e dois anos.  

Não posso dar detalhes sobre nosso trabalho no Céu, mas, se talvez quereis um conselho, só um que seja, eu diria: Deixem de ser arrogantes, pois isso não tem valor nenhum perante o Justo Juiz! E não se esqueçam, aqui sois réus e o prazo final do processo é o dia de vossa morte. 

Eternamente… 

Advogado. 

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