Wilson Matos da Silva (*) –
Ao reler meus artigos “Apelo midiático x intervenção mínima do Direito Penal”, publicado em 20/02/2014 e “Vivemos a mais profunda crise moral e ética no Brasil” de 05/03/2015, escritos há mais de uma década, causa menos surpresa constatar sua atualidade do que indignação perceber o quanto o Brasil insiste em repetir os mesmos erros, agora sob novas roupagens.
Em 2014 e 2015, eu denunciava o avanço do punitivismo midiático, a erosão ética da política e a transformação do Direito em instrumento de conveniência. Agora no limiar de 2026, essa simbiose entre crise moral, populismo jurídico e desprezo constitucional se revela de forma escancarada na insistência do Estado brasileiro em impor o chamado marco temporal às terras indígenas.
À época, eu chamava atenção para dois movimentos aparentemente opostos, mas estruturalmente semelhantes: de um lado, o endurecimento penal estimulado pela mídia e pela comoção social; de outro, a fragilidade ética dos agentes públicos, mais preocupados com a autopreservação no poder do que com o interesse coletivo. Ambos partem do mesmo vício original: a substituição da razão jurídica por paixões, interesses e cálculos políticos imediatos.
O marco temporal é expressão fidedigna dessa patologia institucional. Não se trata de ignorância jurídica — pois o texto constitucional é cristalino ao reconhecer os direitos originários dos povos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupamos. Trata-se de algo mais grave: a escolha consciente de negar a Constituição em nome de interesses econômicos, eleitorais e simbólicos, travestidos de segurança jurídica.
Em 2015, já se afirmava que o Brasil vivia uma crise moral anterior à crise política ou econômica. O raciocínio permanece válido. A insistência no marco temporal não decorre de um debate honesto sobre interpretação constitucional, mas da naturalização de uma ética instrumental, segundo a qual princípios só valem quando não atrapalham o lucro, o poder ou a audiência. Como advertia Hobbes, a verdade só é desejável quando não se opõe ao prazer ou ao interesse humano — e nada parece mais atual.
A construção do marco temporal ignora deliberadamente a história de expulsões, massacres, remoções forçadas e esbulhos renitentes sofridos pelos nossos povos. Mais do que isso, converte a violência histórica do Estado em critério jurídico contra as próprias vítimas. É o mesmo mecanismo observado no punitivismo penal midiático: identifica-se um “outro” — ontem o acusado criminal, hoje o indígena — e o coloca no grupo dos “maus”, legitimando toda sorte de arbitrariedades em nome de uma suposta ordem.
Há, portanto, uma linha de continuidade entre o Direito Penal simbólico critiquei no passado e o constitucionalismo seletivo do presente. Ambos operam sob a lógica do inimigo. Ambos dispensam a técnica jurídica quando esta se torna inconveniente. Ambos se alimentam de uma opinião pública moldada por discursos simplificadores, que reduzem conflitos complexos a slogans facilmente digeríveis.
A crise de representatividade política, também apontada anos atrás, manifesta-se agora na incapacidade do Parlamento de atuar como guardião da Constituição. Ao contrário, parte significativa do Legislativo se converte em seu algoz, tensionando os limites do texto constitucional para atender interesses privados e pressões conjunturais. Não por acaso, o ataque aos direitos indígenas vem acompanhado da criminalização de lideranças, do sufocamento de protestos e da tentativa de transformar a luta por direitos originários em ameaça à ordem pública.
Aqui, a dimensão ética se impõe novamente. Kant já advertia que agir moralmente é agir por dever, não por conveniência. Pergunta-se, então: os defensores do marco temporal estariam dispostos a submeter sua própria história familiar ao mesmo critério? Aceitariam perder suas casas, suas terras ou suas memórias por não ocuparem fisicamente determinado espaço em 5 de outubro de 1988? A resposta, obviamente, é negativa — o que revela a hipocrisia estrutural do argumento.
Não se trata, portanto, de um debate técnico isolado, mas de um projeto político de exclusão, que encontra respaldo numa sociedade ainda marcada por profundas desigualdades morais e materiais. A mesma sociedade que, indignada seletivamente, clama por punição exemplar quando convém e silencia diante da violação sistemática de direitos fundamentais quando as vítimas são historicamente invisibilizadas.
A persistência do marco temporal demonstra que o Brasil não superou sua crise ética. Apenas sofisticou seus mecanismos de negação. O discurso jurídico é utilizado como verniz de legalidade para práticas que, no fundo, reproduzem a velha lógica colonial: a apropriação, a exclusão e a violência institucional.
Revisitar meus pensamentos de outrora não é exercício de nostalgia, mas de coerência. A crítica ao punitivismo, à moralidade seletiva e à política sem ética converge, inevitavelmente, para a denúncia do marco temporal como uma das mais graves afrontas ao Estado Democrático de Direito. Enquanto o país insistir em relativizar a Constituição conforme o interesse do momento, continuará aprisionado numa barbárie jurídica travestida de normalidade institucional.
A mudança, como eu dizia em 2014/15, não virá de fórmulas mágicas ou de interpretações oportunistas. Ela começa na ética — individual e coletiva — e no compromisso inegociável com a Constituição. O RESTO É DESFAÇATEZ!
(*) É Indígena, Advogado Criminalista OABMS 10.689, especialista em Direito Constitucional, é Jornalista DRT 773MS. residente na Aldeia Jaguapiru – Dourados MS. [email protected]


