Estudioso da Floresta Amazônica e sua relação com o clima, cientista explica porque permitir o avanço de lavouras e pastos sobre a mata não faz sentido e ameaça o agronegócio em todo o país
19/07/2020 14h06 – Por: Folha de Dourados
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Por Ana Lucia Azevedo, em O Globo
Considerado um dos maiores especialistas do mundo na Amazônia e seus efeitos sobre o planeta, o climatologista Carlos Nobre viu nas cartas recentes de fundos de investimentos internacionais e de empresários brasileiros ao governo Bolsonaro cobrando informações sobre a política de proteção à Amazônia um momento histórico de virada.
Autor de uma teoria que prevê o risco de savanização da floresta, ele avalia que a economia entendeu que sem ela não há clima, chuva, agropecuária e nem futuro. O avanço da fronteira agrícola é uma das principais ameaças à Amazônia, mas o cientista demonstra, em entrevista ao GLOBO, que o desmatamento põe em risco o próprio agronegócio exportador, responsável por um quinto do PIB nacional e o único setor que tem resistido às crises econômicas recentes.
Um dos ganhadores do Prêmio Nobel em 2008, quando integrou o Painel Intergovernamental de Mudança Climática (IPCC) por seus trabalhos nessa área, Nobre diz que a Amazônia em pé, associada a uma nova indústria, trará riquezas muito maiores que a gerada por sua destruição.
Qual o impacto da Floresta Amazônica na economia?
Ela integra o sistema climático que sustenta a agricultura e o PIB. Vem da Amazônia boa parte da umidade, as chuvas, das quais dependem o Brasil e a América do Sul. É um sistema que existe há milhões de anos e está sob ataque.
Qual o papel dos chamados rios voadores?
Os rios voadores são canais de umidade que se formam quando os ventos vindos do Atlântico atravessam a Amazônia e são encharcados pela umidade gerada pela floresta. Eles seguem por um corredor junto aos Andes e descem em direção ao sul do continente. São interações complexas na atmosfera. Mas há evidências de que a umidade da floresta chega até o Sul.
Há sinais de alterações?
Sim. Quando há seca, a correlação é clara. Em anos de seca na Amazônia, reduz a chuva no Sul do Brasil no inverno, na estação seca, época em que a agricultura e o abastecimento de água mais precisam dela, porque naturalmente chove menos. E há fortes indícios de que é a umidade da Floresta Amazônica que permite a existência da Mata Atlântica no Oeste do Paraná, das matas do Parque Nacional do Iguaçu e de toda a água que vem dali. Não há estudos conclusivos sobre o Sudeste. Mas os rios voadores não são o único mecanismo ligado a desmatamento e mudança climática.
O que o senhor destaca?
A relação entre a floresta e o equilíbrio térmico necessário à agricultura. A Amazônia é um ar-condicionado. É ela que resfria o norte do Cerrado e torna viável a agricultura no Matopiba (acrônimo para Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), a última grande fronteira agrícola da Terra. Mas, com o desmatamento, a Amazônia esquenta. Os ventos da floresta chegam 2°C mais quentes. Isso pode inviabilizar a agropecuária no norte do Cerrado.
Como o desmatamento esquenta a floresta?
A floresta tropical é extremamente ativa, 70% da radiação solar são absorvidos por ela na evapotranspiração, na qual as árvores usam a energia do sol para transformar a água que absorvem do solo em vapor, que devolvem para a atmosfera. Isso gera a chuva, faz da floresta uma usina de água. Quando as árvores são derrubadas, sobra energia para aquecer o ar. A região esquenta. Em períodos de onda de calor, o vento que chega ao Cerrado pode ser até 3°C mais quente. É uma situação crítica.
Quão crítica?
Ao ponto de inviabilizar a agricultura no Matopiba. O norte do Cerrado já é mais quente que a Amazônia. Soja e milho lá estão em situação limite. O próprio desmatamento do Cerrado agrava a situação. Rompe a estabilidade térmica, já delicada, e traz mais calor a uma região tórrida.
A floresta é exuberante. Por que sem ela só há terra arrasada?
A floresta só existe porque existe a floresta. Ela recicla vida e água, num sistema extremamente eficiente em que nada é desperdiçado. Oitenta por cento do solo são paupérrimos, exauridos por milhões de anos de chuvas torrenciais. Quando uma simples folha cai, ela é imediatamente reciclada. Nada se perde. A floresta recicla a água, e cerca de 25% de toda a chuva da Amazônia são produzidos por ela própria. Essa dinâmica frenética, complexa e delicada só começou a ser conhecida nos anos 1970.
Qual o preço da ignorância?
Terra arrasada e pobreza. O “em se plantando tudo dá” de Pero Vaz de Caminha em relação à Mata Atlântica, estendido à Amazônia, é uma visão superficial, equivocada. Mas parte do Brasil insiste em permanecer agarrada à ignorância do passado. E vemos o resultado nas áreas desmatadas.
**Qual o resultado?
A soja na Amazônia, para ser viável, precisa de enorme quantidade de fertilizantes e defensivos químicos. E há as pragas. Insetos perdem os predadores e viram pragas.
E para o gado?
Usam a terra por sete, 15 anos no máximo, e abandonam. Não serve mais para pasto, fica degradada. Estima-se que 23% dos 800 mil km2 desmatados foram abandonados.
E depois?
Desmatar é acabar com o futuro. Dá lucro a poucos por pouco tempo, um modo de ganhar dinheiro colonial, de visão curta. A floresta não voltará a ser como é, ela é muito difícil de restaurar. Nem ela, nem o mundo que existe graças a ela.
O que o senhor pensa em estudar agora?
Quando propus a teoria da savanização na Amazônia devido a mudanças climáticas, há 30 anos, não imaginei que o processo pudesse se estender. Mas agora há sinais de que as savanas poderiam ocupar parte do Sul, mais precisamente o Oeste do Paraná, que mencionei anteriormente. A região onde está Foz teria uma vegetação de Cerrado, parecida com a do Mato Grosso do Sul.
E por quê?
Desde 2012 sabemos que o fluxo de umidade da Amazônia é fundamental para o regime hídrico de parte do Sul do Brasil no inverno. O problema é que se há menos árvores devido ao desmatamento, haverá menos vapor d’água indo para o Sul. E só chove um pouco mais no inverno nessa área do Paraná devido a esse fluxo. Então, a savanização associada ao desmatamento da Amazônia, um fenômeno radical, cujo risco levantei nos anos 90, tornou-se plausível bem distante da Floresta Amazônica.
No ano passado, o senhor publicou um estudo alertando que o chamado ponto sem volta para a savanização estava mais perto do que nunca. O quão próximo estamos agora?
Bem na beira do abismo. Os modelos climáticos indicavam a transformação quando o desmatamento chegasse a entre 20% e 25% da floresta. Estamos em 17%, continua a esquentar. A previsão é que restariam menos de 40% da floresta tropical, o resto seria uma savana pobre. E os sinais de que as mudanças aceleraram e a floresta está a ponto de dar lugar a uma savana, não como a do Cerrado, mas mais pobre, são visíveis e mensuráveis.