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Democracia norte-americana sai abalada da eleição; Trump deixa um país dividido

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Para Felipe Loureiro, Trump deixa um polarizado e ferido domesticamente tanto quanto os EUA no contexto do pós-guerra civil

A democracia norte-americana precisará de um longo processo de recuperação após quatro anos de Donald Trump na presidência. A derrota para Joe Biden, confirmada no último sábado 7, deve representar apenas o início de uma normalidade que deixou de ser regra com o republicano.

De acordo com Felipe Pereira Loureiro, professor do Instituto de Relações Internacionais da USP e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-INEU), o presidente Donald Trump deixa como uma das heranças da sua gestão a deslegitimação da democracia.

Em conversa com CartaCapital, logo após o anúncio da vitória do democrata, Loureiro afirmou que o país que Biden recebe é “tão dividido, polarizado e ferido domesticamente quanto os Estados Unidos no contexto do pós-guerra civil [1861 – 1865]”.

“É este o grau de polarização que estamos falando. Estudando a história dos Estados Unidos há muito tempo, eu não consigo te dizer um presidente que assumiu a presidência com uma sociedade dividida dentro de uma perspectiva confrontacional. Um lado da sociedade entende que o outro é inimigo, e é por isso que eu recorro ao exemplo da guerra civil”, diz o professor.

Para ele, há um risco remoto de, em meio à polarização em que o país se encontra, o democrata não assumir o mandato no dia 20 de janeiro. Mas, segundo Loureiro, é preciso se atentar às reações dos apoiadores de Trump, da imprensa conservadora e do partido Republicano.

“[Se] percebermos manifestações de rua com participação de milícias, apoiadas por grandes nomes do partido Republicano e pela mídia conservadora, eu acho que a situação pode ficar bem perigosa”, alerta.

“O que preocupa é que uma grande parcela da sociedade não reconheça o resultado, com manifestações contínuas, apoiadas por algumas figuras do partido Republicano e por Trump. Será um cenário de permanente instabilidade, que vai demandar muito do Biden para conseguir acalmar a situação”, acrescenta.

Na conversa, o professor atribui a Trump a responsabilidade pelo quadro atual. Leia a seguir a entrevista completa.

CartaCapital: A democracia norte-americana sai revigorada ou abalada da eleição?

Felipe Loureiro: Eu não tenho dúvida de que sai abalada. E por uma razão muito simples: o Trump e o trumpismo continuam sendo forças fundamentais no cenário político norte-americano. A forma como ele lidou com o processo eleitoral, especialmente na deslegitimação dos votos pelos correios, e o fato dele não reconhecer a vitória do Biden e afirmar que a eleição estaria sendo roubada terão efeitos significativos.

Estamos falando de uma pessoa que recebeu mais de 70 milhões de votos e as consequências da fala dele – que ecoa muito nos meios de comunicação conservadores – e toda a estrutura paralela de narrativa em redes sociais enfraquecem a democracia norte-americana, o que não significa que a vitória do Biden não possa revigorá-la.

CC: A preocupação começa já agora no período de transição antes da posse?

FL: Nós temos duas variáveis que precisamos observar com muita atenção nos próximos dias: primeiro, como os apoiadores de Trump vão reagir às manifestações golpistas do presidente, especialmente os grupos de extrema direita e de supremacia branca, pois muitos deles são milícias armadas. Outra variável é como as figuras de alto escalão do partido Republicano e a estrutura midiática conservadora dos Estados Unidos, em particular a Fox News, vão reagir.

Se estas variáveis evoluírem, no sentido de percebermos manifestações de rua com participação de milícias apoiadas por grandes nomes do partido Republicano e pela mídia conservadora, eu acho que a situação pode ficar bem perigosa.

CC: Com risco do Biden não assumir ou risco de postergação?

FL: Eu acho que esse risco [de não assumir] é remoto, pois está vinculado às Forças Armadas impedirem a posse. Outra possibilidade é a série de questionamentos jurídicos que a campanha do Trump vai fazer, mas é pouco provável que prospere, porque eles não estão trazendo nenhuma evidência de fraude.

As comparações com o ano 2.000, na disputa entre Jorge W. Bush e Al Gore estão fora do lugar. A situação lá se concentrou em um estado, na Flórida, o número de votos era bem menor e a questão não envolvia fraude. Aqui, falamos de uma questão de fraude e votos contabilizados irregularmente. Como se vai levar isso a cabo sem provas? Então, eu acho pouco provável.

As possibilidades para o Biden não assumir são uma atuação mais decisiva das Forças Armadas que, nos Estados Unidos, nunca atuaram na política doméstica e uma situação em que a judicialização que o Trump está fazendo desse certo.

Agora, eu estou aqui ponderando  as possibilidades de uma violência dispersa na sociedade. Já tem vários analistas falando em “guerra civil fria”, fazendo uma comparação entre a Guerra Fria [que envolveu EUA e União Soviética] e o tipo de guerra que tem acontecido na sociedade norte-americana, que é uma espécie de guerra civil fria, que pode ter violência.

O que preocupa é haver uma grande parcela da sociedade que não reconheça o resultado, com manifestações contínuas, apoiadas por algumas figuras do partido Republicano e por Trump. Então, será um cenário de permanente instabilidade, que vai demandar muito do Biden para conseguir acalmar a situação.

CC: O que o Trump deixa de legado?

FL: O descrédito das instituições, como o jornalismo, as universidades, a ciência, além do racismo explícito, a xenofobia e a crítica ao neoliberalismo pela direita são um legado amplo que a eleição mostrou que, independente de ter perdido, o Trump e o trumpismo estão vivíssimos e são uma força fundamental da política norte-americana. O Biden é uma coalizão, já o trumpismo é a força política central dos Estados Unidos e isso ficou muito claro.

Então, este é um legado: mesmo que o Trump deixe de existir, o trumpismo não morre com ele.

CC: O trumpismo supera o Trump.

FL: Com certeza, e haverá aqueles e aquelas que vão querer ser mais trumpistas que o próprio Trump e os que vão querer o substituir quando ele morrer e tudo indica que o movimento terá força suficiente para sobreviver além dele.

CC: Que país o Trump deixa?

FL: Eu vou fazer uma afirmação forte, pois a sensação que eu tenho é esta, embora não tenha certeza. Sinto que o Biden vai pegar um país tão dividido, polarizado e ferido domesticamente quanto os Estados Unidos no contexto do pós-guerra civil.

É este o grau de polarização que estamos falando. Estudando a história dos Estados Unidos há muito tempo, eu não consigo te dizer um presidente que assumiu a presidência com uma sociedade dividida dentro de uma perspectiva confrontacional. Um lado da sociedade entende que o outro é inimigo, e é por isso que eu recorro ao exemplo da guerra civil.

Da mesma maneira que houve muita dificuldade no contexto pós 1.865 para reconstruir minimamente a unidade da sociedade norte-americana, eu vejo que o Biden terá a mesma dificuldade.

Isso vai passar por várias questões. Se ele conseguir tirar o país da crise que a pandemia trouxe vai ser importante, mas não adianta só isso. Deverá ter uma estratégia para enfraquecer o verdadeiro universo paralelo que se criou nos Estados Unidos do ponto de vista informacional com toda uma rede de rádio, televisão e redes sociais.

No longo prazo, vai depender muito do Biden e dos democratas conseguirem furar essas bolhas e ganhar capilaridade em setores sociais que recebem uma narrativa conspiratória e fora da realidade.

É um país com desafios gigantescos.  Eu não consigo identificar nada próximo do grau de polarização atual em todo século XX.

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