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‘Fui alvo por ser mulher negra em posição de autoridade’, diz delegada sobre preconceitos

Juliel Batista –

Na manhã desta terça-feira (14), a delegada de Polícia Civil Thays Bessa concedeu entrevista exclusiva à Folha de Dourados, em que falou pela primeira vez sobre os ataques preconceituosos que sofreu ao vivo durante a cobertura de um homicídio em Dourados. Com firmeza e serenidade, ela abordou o impacto das ofensas, as providências legais tomadas e a realidade da violência de gênero nas redes sociais.

A entrevista foi concedida ao repórter Cido Costa, após a repercussão massiva da live feita pelo veículo no local do crime. O vídeo, transmitido ao vivo, atingiu 3,5 milhões de visualizações, 58.200 curtidas e gerou 2.412 comentários — entre eles, muitos com conteúdo ofensivo e discriminatório.

Um dos comentários que mais chamou atenção e gerou revolta dizia:

“Nossa delegada feia tá mais para ser empregada doméstica aqui da minha casa que qualquer outra coisa e tratar ela igual a cachorro aqui.”

Durante a entrevista, Thays falou abertamente sobre o impacto dessas falas, afirmou que já instaurou dois inquéritos policiais e alertou para os perigos da naturalização do discurso de ódio online. Em suas palavras mais contundentes, declarou: “Fui atacada não apenas por ser mulher, mas por ser uma mulher negra em posição de autoridade.”

Thays revelou que já há inquéritos abertos, boletins de ocorrência registrados e que uma suspeita foi identificada e ouvida

A entrevista foi marcada por falas contundentes que colocaram em evidência a violência de gênero nas redes sociais e o impacto disso no trabalho de mulheres em cargos de liderança. Thays também revelou que já há inquéritos abertos, boletins de ocorrência registrados e que uma suspeita foi identificada e ouvida.

Ela reforçou que as investigações seguem em curso e que espera responsabilização exemplar dos autores. A delegada ainda deixou um recado direto às mulheres: “Formalizem, denunciem. Precisamos agir para construir um futuro mais respeitoso”.

“Formalizem, denunciem. Precisamos agir para construir um futuro mais respeitoso”

Confira a íntegra da entrevista:

Folha de Dourados – Delegada, como a senhora recebeu os comentários ofensivos e machistas durante a transmissão ao vivo da Folha de Dourados? Qual foi sua reação no momento em que soube?

Delegada Thays Bessa – Primeiramente, bom dia. Obrigada, Cido, pela oportunidade de estar aqui falando um pouco sobre o caso que repercutiu de maneira inesperada. Ao ler os comentários — que tomei conhecimento por meio da minha chefia — recebi com espanto e tristeza.

Tristeza por saber que ainda existem pessoas que pensam dessa forma, que desumanizam os outros, desqualificam e utilizam a internet para propagar pensamentos machistas, sexistas e racistas.

“Ao ler os comentários — que tomei conhecimento por meio da minha chefia — recebi com espanto e tristeza.”

A senhora pretende tomar alguma medida legal contra os autores dessas ofensas? Já foi registrado boletim de ocorrência?

Sim, Cido. Diante das ofensas que foram imputadas e relatadas, eu registrei dois boletins de ocorrência aqui mesmo pela Polícia Civil do Mato Grosso do Sul.

Já foram instaurados dois inquéritos policiais, e a investigação está a cargo do Setor de Investigações Gerais (SIG) aqui de Dourados.

Estamos trabalhando para a formação da justa causa, ou seja, buscando comprovar a autoria e a materialidade delitiva dessas condutas.

“Já foram instaurados dois inquéritos policiais…”

Alguém já foi identificado ou responsabilizado pelos comentários criminosos? Há algum avanço nas investigações?

Tivemos, sim, a identificação de uma possível autora. Ainda estamos investigando mais profundamente a questão dos dados e da preservação da prova, mas já há essa identificação — trata-se de uma pessoa residente aqui em Dourados. Ela já foi, inclusive, conduzida até o SIG e prestou declarações.

“(…) trata-se de uma pessoa residente aqui em Dourados. Ela já foi, inclusive, conduzida até o SIG e prestou declarações.”

Sabemos que muitas vezes os perfis nas redes sociais são falsos ou anônimos. Como tem sido o trabalho da polícia para identificar essas pessoas? Existem barreiras técnicas?

Com certeza, Cido, existem barreiras. Mas o que a polícia busca é sempre preservar os dados, porque é fundamental que, no bojo da investigação, haja provas robustas. Só com um inquérito bem fundamentado é que podemos buscar uma condenação e efetivar a justiça.

Nosso trabalho inclui a expedição de ofícios às plataformas digitais, solicitando informações como o IP, os metadados — que são os dados sobre os dados —, e qualquer outra informação relevante que nos ajude a identificar a origem da publicação criminosa.

“Só com um inquérito bem fundamentado é que podemos buscar uma condenação e efetivar a justiça.”

Como mulher e autoridade na segurança pública, a senhora acredita que essas ofensas têm relação com o fato de ser uma figura feminina em uma posição de liderança?

Sim, Cido. Pelo que já conversei com colegas, eu sou a primeira mulher negra a exercer o cargo de autoridade policial aqui em Dourados. Isso é um marco — para mim, pessoalmente, é motivo de orgulho. Mas também entendo que essa posição, em um contexto histórico como o nosso, desperta reações.

Acredito, sim, que meu papel de liderança e de destaque, aliado às minhas características fenotípicas, tenha sido um dos motivos pelos quais fui atacada. Ou seja, fui alvo não apenas por ser mulher, mas por ser uma mulher negra em posição de autoridade.

“Pelo que já conversei com colegas, eu sou a primeira mulher negra a exercer o cargo de autoridade policial aqui em Dourados.”

A senhora já havia enfrentado esse tipo de ataque anteriormente, especialmente em coberturas de casos de grande repercussão como esse?

Não, Cido. Esse foi o primeiro ataque dessa natureza que recebi. Nunca havia passado por algo tão grave e com essa dimensão. Já dei inúmeras entrevistas em outros contextos, inclusive de grande repercussão, mas nunca havia sido alvo de ataques como esses.

“Nunca havia passado por algo tão grave e com essa dimensão.”

Durante sua atuação como presidente do CMDM, a senhora lutou por políticas públicas de proteção à mulher. O que esse episódio revela sobre o cenário atual da violência de gênero nas redes?

Cido, é importante explicar o que é o CMDM: o Conselho Municipal dos Direitos da Mulher.
Ele tem uma atuação importantíssima em Dourados, fiscalizando as políticas públicas voltadas às mulheres.

Estive à frente do CMDM por mais de dois anos, cumprindo meu mandato, e durante esse período lutamos para que as políticas públicas fossem garantidas. Promovemos audiências públicas, debatemos temas emergentes e buscamos fortalecer os direitos das mulheres.

Esse episódio mostra que ainda temos um cenário de violência de gênero muito presente, inclusive nas redes sociais. Por isso, reforço: em caso de ofensa ou violação de direitos, é fundamental que as mulheres busquem as autoridades e registrem boletins de ocorrência.

Só assim podemos construir um futuro mais respeitoso — tanto para as mulheres quanto para a população negra.

“Esse episódio mostra que ainda temos um cenário de violência de gênero muito presente, inclusive nas redes sociais.”

Qual mensagem a senhora deixa para outras mulheres que, assim como a senhora, ocupam cargos públicos ou de liderança e enfrentam ataques semelhantes?

O recado que eu deixo é que, diante de qualquer ofensa ou violação, as mulheres devem procurar as autoridades. Formalizem o ocorrido, registrem, denunciem. Precisamos parar para refletir sobre o que está acontecendo e agir, para que as futuras gerações encontrem uma sociedade mais justa e respeitosa.

“Formalizem o ocorrido, registrem, denunciem.”

Por fim, a senhora considera que esses ataques acabam ofuscando ou desviando a atenção do que realmente importa, que é o combate ao crime e a busca por justiça para as vítimas?

Sim. No meu vídeo, por exemplo, o ataque foi direcionado à minha pessoa. Eu estava tratando de um caso grave: um homicídio ocorrido em uma área de retomada indígena, uma área de risco. A gravidade do fato acabou ofuscada. O foco passou a ser minha figura, não o crime em si.

E naquele momento, eu estava representando o Estado, transmitindo informações de interesse público. Mas isso foi completamente desviado. Infelizmente, as informações sobre o caso foram deixadas de lado por conta dos ataques pessoais que recebi.

“A gravidade do fato acabou ofuscada. O foco passou a ser minha figura, não o crime em si.”

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