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Desde 1968 - Ano 56

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‘Cordialidade’, por Julio Pompeu

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Julio Pompeu (*) –

Comprando um lanche naqueles lugares em que todos os sanduíches tem o mesmo gosto, a moça do caixa me cumprimenta sorrindo. Conheço bem aquele sorriso de merda. É igual ao meu. Sorriso de simpatia fingida. Bem fingida, mas que, ainda assim, não esconde o fingimento. Ela não queria estar ali. Não quer que eu tenha um bom dia. Não queria que eu estivesse ali. Não queria ninguém ali. Eu também não queria estar ali, comendo aquela porcaria, mas é o que dá para comer. A gente vive assim, fazendo o que dá. E sorrindo, pra fingir que é feliz.

Vida é alguma coisa que acontece entre a necessidade e a vontade. Quero um monte de coisas, mas não posso quase nada do que quero. Não tenho grana. Nem tempo, porque meu tempo é pra trabalhar pra gente que ganha mais que o necessário e tem tempo para fazer o que quer. Nem tenho mais querer. Só faço o necessário. E sorrio porque é necessário. Sorriso conformado de gentileza fingida.

E não é só comigo que a vida é assim. Sou porteiro de um prédio de gente rica, que fica num bairro onde eu não posso viver mas posso trabalhar se aceitar trabalhar sorrindo. Pra mostrar que estou feliz. Pra fingir que não entendo que sou o ferrado num lugar de gente rica que me despreza, mas que me tolera porque precisa do trabalho que eu faço.

Mas eles também fingem. Também estampam sorrisos falsos. São sorrisos diferentes dos nossos. Mas são iguais na falsidade. Simulam simpatia. Enquanto o nosso simula gratidão por estar ali. Mas não há gratidão nenhuma. Nem simpatia. Há só conformismo com o necessário lá e cá.

Tem gente que finge menos, é verdade. E até gente que parou de fingir. Tanto no meu mundo quanto no deles. Pedro parou de fingir. Ele trabalhava aqui, neste mesmo prédio chique. A moradora do 401 nunca aperta o interfone. Para no portão do prédio e espera a gente abrir pra ela. E fica nervosa se a gente demora. Pra ela, a gente tem que vê-la sempre. E quando não vemos e abrimos logo, nos olha com cara de nojo. Quando abrimos logo, passa indiferente. Ela não finge. Nem Pedro. A cara de nojo dela e as nojices dos outros fez Pedro cansar de fingir e passar a ter vontade de ter vontade.

Na comunidade, ele se juntou com gente que nunca fingiu. Pessoal bicho solto, que faz o que quer. Foi Pedro quem organizou o assalto aqui no prédio. E acho que foi ele quem deu a coronhada na testa da moradora do 401. Deve ter batido nela sem esconder o sorriso. Ou foi algum bicho solto. Quem não precisa fingir sorriso, é capaz de qualquer coisa.

O pessoal daqui também não escondeu o sorriso quando a polícia foi lá na comunidade e matou 17 pessoas. Sorriram sem fingimento. Quando falam com eles de violência, fingem horror, mas quando ela acontece longe deles, quando mata gente que nem eu, sentem alívio, ou alegria quando querem vingança. Ou, ainda, não sentem nada. São indiferentes ao que acontece com gente que nem eu. Gente que serve sorrindo. Gente submissa. Gente pobre.

Entre os 17 que mataram tinha gente sorridente e também gente que não sorria. Na verdade, quando a polícia chega, só se vê cara de medo e de raiva. E a polícia atira nas duas. Tanto faz, ninguém do mundo de lá vai ligar para quem morre do lado de cá. Liga só quando falta ao trabalho. Foi o que aconteceu com Pedro. Faltou ao trabalho porque foi morto pela polícia. O pessoal daqui nem sabe disso. Nem quer saber. Acha só que ele sumiu. Abandonou o emprego. Entrei na vaga dele, mas não disse a verdade sobre onde eu moro. Eles também não ligam pra isso. Lugar de pobre é tudo igual, tanto faz.

Lá vem a moradora do 401, voltando da igreja. Vou deixá-la esperando pra entrar só para receber sua cara de nojo e lhe devolver o sorriso falso que ela merece.

(*) Escritor e palestrante, professor de Ética do Departamento de Direito da UFES, ex-secretário de Direitos Humanos no ES.

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