Carlos Magno Mieres Amarilha (*) –
Ah, o Carlos Magno… Meu vizinho do trigésimo andar, figura fácil no boteco da Ria Livraria, ali na Vila Madalena. Conheço aquele camarada há uns dez anos, incontáveis chopps divididos, risadas e algumas lágrimas também. Lembro de quando ele me contou sobre a Vera Lúcia. Os olhos brilhavam, sabe? Falava dela como se ela fosse a oitava maravilha do mundo, a tampa da panela dele, o feijão com arroz perfeito. “Cara,” ele dizia, balançando a cabeça e sorrindo bobo, “a gente se encaixa que nem peça de Lego. É um amor… sei lá, daqueles de filme antigo, sabe?”
E era mesmo. Eu via os dois juntos, nos churrascos de domingo, nos shows de jazz ali perto. Ela, sempre com um sorriso calmo e um jeito de cuidar dele nos mínimos detalhes. Ele, um bobo apaixonado, olhando para ela como se não existisse mais nada no universo. E a gente, os amigos, suspirava em segredo: “Que casalzão, bicho! Achou a metade da laranja, cravou!”
Cinco anos se passaram voando. A gente continuava se encontrando na Ria, o chopp gelado, as conversas sobre futebol, trabalho, poesia, música, livros, do cotidiano da vida. A Ria Livraria, um reduto de gente interessante, volta e meia a gente esbarrava com algum ator famoso, um escritor renomado tomando um café no canto, um cineasta discutindo roteiro acaloradamente. Mas naquela noite, a nossa mesa parecia isolada do burburinho artístico. Carlos e Vera Lúcia sempre juntos, um completando a frase do outro, um carinho discreto, mas constante. Parecia que a perfeição tinha endereço fixo naquele apartamento com vista para a cidade de selva de pedras.
Aí, um dia, o Carlos me chama pra um chopp. Aquele olhar dele não era o mesmo. Tinha uma sombra, sabe? Um peso. A gente pediu as de sempre, umas porções de legumes e frios, depois peixe, o da casa, papo vem, papo vai, de repente, interrompeu a conversa sobre os escritos de Jorge Luis Borges, ele ficou ali, mexendo no copo, um silêncio que gritava.
“Cara…”, ele começou, a voz meio embargada, “…a Vera Lúcia… a gente não está mais junto.”
Engasguei com o chopp. “Como assim, Carlos? Não tô entendendo…”
Ele suspirou fundo, olhou para o movimento da rua. “Não dá mais, bicho. Entenda, nosso relacionamento… era perfeito. Juro por Deus. Mas… eu precisei libertar ela.”
“Libertar? Carlos, vocês eram tão… ligados!”.
“Eu sei, eu sei. Ela é perfeita, cara. Linda de doer, inteligente que só ela, um coração gigante. E jovem… tão cheia de vida. Sabe, eu comecei a pensar… o mundo é tão vasto, cheio de coisas incríveis pra ela viver. E comigo… nosso mundinho era tão bom, tão nosso, mas tão pequeno”.
Ele fez uma pausa, os olhos marejados. “Senti que se ela ficasse comigo… seria como prendê-la em um pedestal. Uma estátua linda, admirada, mas imóvel. Ela merece voar, conhecer outras paisagens, fazer novos amigos, quem sabe… viver outros amores”.
As palavras dele me atingiram como um soco no estômago. Uma lógica tão dolorosa, um amor tão… diferente. “Mas, Carlos…”, tentei argumentar, “…vocês se amam tanto! Isso não faz sentido…”
Foi aí que ele me olhou com aquela intensidade que eu conhecia bem, a mesma que usava quando falava de um filme que o tinha marcado. “Cara, pensa comigo… ‘Se esse amor ficar entre nós dois, vai ser tão pobre amor, vai se gastar’. Sacou?”
Arqueei a sobrancelha, tentando processar. “Tá citando o Tio Raul Seixas agora?”
Ele sorriu amargamente. “‘A Maçã’, bicho. ‘Se eu te amo e tu me amas, um amor a dois profana o amor de todos os mortais’. Forte, né? Mas faz um sentido do caramba pra mim agora”.
“Mas… ciúme, posse… isso não era com vocês, Carlos”.
“Exato! E justamente por não ter essa prisão, essa neurose, que eu consigo enxergar além. ‘Amor só dura em liberdade, o ciúme é só vaidade’. Eu amo a Vera Lúcia demais pra egoisticamente mantê-la presa a mim, ao nosso pequeno universo. Ela é como aquela maçã da música, entende? Tão bonita, com tanto potencial… ‘Infinita tua beleza, como podes ficar presa, que nem santa num altar?’ Não posso fazer isso com ela”.
“E o que você quer, Carlos? Se você a priva… do que mais venera?”
Ele suspirou de novo, olhando para o copo vazio. “Quero que ela viva tudo que tem pra viver. Que experimente a beleza da vida. Que descubra o mundo em sua totalidade. Nosso amor foi lindo, foi real, não posso mantê-la nesse meu mundinho, ela merece outros, conhecer e reconhecer novos mundos. E eu… eu preciso ter a coragem de deixá-la seguir”.
“Você tá sofrendo, né?”, perguntei, a voz baixa.
Ele assentiu, as lágrimas finalmente escorrendo pelo rosto. “Choro, cara. Choro muito. Mas, ao mesmo tempo… sinto que fiz o certo. Lá no fundo, sei que a libertei para o mundo. Cada segundo que a gente viveu junto foi real, foi bom. E isso ninguém tira da gente”.
Ficamos em silêncio por um tempo, só o barulho dos garçons e a conversa animada das outras mesas da Ria, onde um grupo de atores globais gargalhava alto e um poeta declamava versos baixinhos para uma musa inspiradora.
Olhei para o Carlos, meu amigo de tantas noites ali, naquele lugar que respira arte e liberdade. Vi a dor, mas também vi uma estranha paz em seus olhos. Uma coragem rara, um amor que transcendeu a posse, o egoísmo, ecoando os versos do velho Raul.
Naquela noite, enquanto voltava para o meu apartamento, pensando nas palavras do Carlos lá do trigésimo andar, percebi que o amor, às vezes, se manifesta de formas que a gente nem imagina. Que libertar pode ser o ato de amor mais genuíno, mesmo que doa na alma. E que, talvez, a perfeição de um “feijão com arroz” nem sempre seja a receita para a felicidade eterna. Às vezes, o amor precisa alçar voo, desbravar novos horizontes, mesmo que isso signifique dizer adeus. E o Carlos, com sua decisão dolorosa e corajosa, embalada pela filosofia libertária do Raul Seixas, me ensinou uma nova e inesperada forma de amar: que o amor só dura em liberdade. E que temos que gostar do ‘outro’ em todos os sentidos, respeitar e que possa crescer em quanto pessoas e o mundo é muito belo e tem que ser vivido.
(*) IN: CRÔNICA DO DIA. “A MAÇA DA LIBERDADE”. Prelo, 2025.