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Campo Grande 126 anos: ‘A voz guarani saúda a cidade morena’, por Ana Maria Bernardelli

Por Ana Maria Bernardelli 

Hoje, 26 de agosto, ao celebrar o aniversário de Campo Grande, a poeta Delasnieve Daspet e eu, Ana Maria Bernardelli, prestamos tributo não apenas às suas ruas largas e arborizadas, às águas que a circundam ou às suas tardes de céu imenso, ao pôr do sol mais lindo do Brasil, mas sobretudo à sua alma múltipla.

Esta é uma cidade que aprendeu a se fazer grande no gesto de acolher. Acolheu povos de tantas origens, de tantas histórias, que aqui encontraram chão para fincar raízes, trabalho para erguer dignidade e espaço para florescer descendentes. É por isso que Campo Grande se tornou mais do que território geográfico: fez-se polo humano, lugar de convivência entre diferenças, um dos mais prazerosos lugares para viver e viver bem.

Para esta homenagem, escolhi trazer a voz do povo guarani. Entre tantos que aqui se somaram, volto-me a eles porque tenho acompanhado a sua intensa luta identitária. Depois de séculos de marginalização e silêncio, o povo de língua guarani ressurge, firme e luminoso, como símbolo de resistência e de memória. Em cada palavra dita ou cantada, pulsa a consciência de que essa luta, neste lugar, é instrumento de gratidão não apenas por um território simbólico, mas por uma terra que é casa, é raiz.

Trago, portanto, um poema de Delasnieve Daspet, em guarani, acompanhado de sua tradução ao português. A poesia, nessa língua primeira da América, soa como canto que se mistura ao vento, como rio que guarda segredos de um tempo anterior às fronteiras. Ao ser transposta para o português, conserva sua essência, mas abre também novas camadas de sentido: revela o vínculo entre palavra e terra, entre voz e ancestralidade, entre memória e futuro. É nessa leitura que proponho a escuta.

Koˋẽmbota   Campo Grandepe / (Ñu guasume)

Koˋẽmbota oĩme,   

Aikundaha che año,                                                                    

Mávave ndaipóri, 

Che ha chemínte. 

Akañy tehechaga’ugui.

I

Ambotyvõ  che resa, 

Che resa  ikane’õma  

Yvytĩ  pyharegua.

Ajesareko  ha amaˋẽ  jey

Yvygui  itatĩ 

Guataháre. 

II

Ñasaindy

Okañy  ysyrýre y 

oikytĩ  ohása  táva  mbytegui.

Araka’eve  ndaikuaai haˋépa

Ñe’ẽjera ñemihame! 

III

Umi yvyrakuéra yvytu ombokachava  

Yvytu piroˋy hykuéva 

Ko’ẽ mboyve,

Ipahápe  yvykua puku

Ndaipóri  mbaˋevete!

IV

Ha che keha 

Mba’épa aheka? 

Mba’e porã mante omeˋẽ  vaˋerᾶ 

tekove añandúva!

Ajapo jeýne!

V

Oguahẽvo  pyhare 

Ysyry  mante  ha’e  jey  y

Ogueraha képe hechapyre,  

Upévare   haˋete  ndojehúi mbaˋeve 

Ñe’ẽsyry ohóva

 Amombe’u  ñemihame!

VI

Kuarahy rendy 

Iñapysẽ porᾶ ha imbarete

Aha volíchope 

aikumby haguã kafé.

Ore ñemuhára ha che. 

Ajesareko 

Táva  opáyva….. 26 de março 2001/

Madrugadas em Campo Grande.

Delasnieve Daspet

.

Está rompendo o dia.

Vago a sós.

Sem testemunhas.

Eu e eu.

Me perco na solidão.

.

Fecho os olhos.

Olhos já cansados

Da neblina noturna.

E quando abro ainda contemplo

O chão de prata

Das calçadas.

.

A luz da lua

Se perde nas águas dos rios

Que cortam a cidade…

Nunca sei se é

O Prosa ou o Segredo!

.

As árvores balançam

Embaladas pela brisa

Da madrugada,

E no final do túnel

Não existe nada!

.

E meus sonhos?

E o que busco?

Bem sei que o da

Vida sinto!

Insisto!

Amo!

.

Quando a noite vem

O rio apenas é uma água

Que carrega os sonhos,

Por isso não ligo

Se é o Prosa que vai

Contar meus Segredos!

.

Nos raios do sol

Que surge belo e forte

Vou a um bar

Tomar um café.

Somos eu e o Jornaleiro.

Contemplamos

A cidade que acorda…

No guarani, cada sílaba parece carregar o sopro da coletividade. Não é o indivíduo isolado que fala, mas o povo inteiro que se pronuncia. A cidade, ao acolher esse eco, reafirma-se como espaço onde as vozes não se apagam, mas se entrelaçam. É o contrário da dispersão: é a convergência.

Aprendemos, nós, quase um milhão de habitantes a enxergar que não se trata apenas de comunicação, mas de percebermos – uma cosmovisão: um modo guarani de estar no mundo, de nomear a natureza e de manter vivos os mitos, a memória e a resistência do povo indígena.

Aprendemos a valorizar a inserção da língua no tronco linguístico Tupi-Guarani, sua estrutura rica e complexa.

Aprendemos que a língua não é mero instrumento de comunicação: é repositório de um modo de ver o mundo, de narrar os ciclos da natureza e de nomear as forças invisíveis. A palavra, para o guarani, é sagrada, tem potência de criação e de cura.

Aprendemos que a oralidade guarani é guardiã de cantos e tradições transmitidos de geração em geração.

Aprendemos a sua força de sobrevivência apesar das políticas de apagamento cultural, mostrando sua resiliência e capacidade de adaptação.

Acompanhamos os avanços no dedicado ensino bilíngue nas múltiplas escolas na capital e interior, no encantamento da literatura indígena contemporânea, na produção musical e audiovisual em Guarani.

Reconhecemos o mérito acadêmico e a presença em movimentos sociais e culturais do povo guarani.

Aprendemos, nesta data de comemoração, que uma ponte foi erguida por meio da língua – uma ligação entre tradição e modernidade, evidenciando que a realidade indígena guarani que nos envolve não é “relíquia”, mas elemento vivo e produtivo.

O gesto de trazer a língua guarani para saudar os 126 anos de Campo Grande não se deu por acaso. Foi escolha consciente, enraizada na história e no coração da terra. O povo guarani, por meio de sua língua, ergueu-se como porta-voz simbólico da homenagem, e esse gesto se evidencia em três movimentos fundamentais.

Primeiro, na própria escolha da homenagem. Não se buscou uma fala qualquer, mas aquela que carrega séculos de resistência, identidade e vínculo profundo com o chão que hoje chamamos Campo Grande. A língua guarani, que ecoa antes mesmo da fundação da cidade, legitima o gesto, devolvendo ao coração urbano a memória de sua origem.

Segundo, no poema de Delasnieve Daspet, onde essa voz se concretiza em palavra viva. Ao incluir o guarani e sua tradução, a poeta não apenas escreve: ela oferece a língua originária como presente. É um ato de reconhecimento e de entrega, como se o poema fosse uma mão estendida — da ancestralidade ao presente da cidade.

Por fim, na reflexão que se impõe após o ato poético. Não se trata apenas de estética literária, mas de uma afirmação política e cultural. A língua guarani revela sua dimensão de cosmovisão, resistência, memória e futuro. Assim, são os próprios guaranis, com sua palavra milenar, quem cumprem a tarefa de felicitar Campo Grande. E o fazem não em nome de si apenas, mas como um eco coletivo, que amplia e aprofunda o sentido da celebração, recordando que a cidade não se ergue sozinha: ela nasce do encontro de vozes.

Assim, nesta data, exaltamos Campo Grande como território de diálogo e convivência. Uma cidade que não teme a diversidade porque nela encontra sua própria força. Que esta homenagem em guarani, língua de raízes ancestrais e de esperança renovada, nos inspire a preservar, valorizar e reconhecer todas as vozes que a compõem. Pois Campo Grande é isso: um lugar de viver, e sobretudo, de viver bem.

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