fbpx

Desde 1968 - Ano 56

26.6 C
Dourados

Desde 1968 - Ano 57

InícioColunistaAusência da antropologia: Elo perdido na formação interdisciplinar de ciências biológicas e...

Ausência da antropologia: Elo perdido na formação interdisciplinar de ciências biológicas e gestão ambiental

Reinaldo de Mattos Corrêa (*) –

Em um mundo cada vez mais complexo, onde desafios globais como mudanças climáticas, crises sanitárias e conflitos socioambientais exigem respostas multidisciplinares, a falta de um curso de graduação em Antropologia em uma universidade pode representar uma lacuna crítica na formação de profissionais das ciências naturais e ambientais. Em instituições que oferecem cursos como Biotecnologia, Ciências Biológicas (Bacharelado e Licenciatura) e Gestão Ambiental, a ausência dessa disciplina compromete não apenas a visão holística dos estudantes, mas também sua capacidade de atuar em problemas reais, onde a interface entre ciência, cultura e sociedade é inevitável.

Biotecnologia: Quando a Técnica Ignora o Contexto Humano

O Bacharelado em Biotecnologia, com duração de quatro anos, prepara estudantes para manipular organismos vivos em prol de avanços médicos, agrícolas e industriais. No entanto, sem a Antropologia, esses futuros profissionais perdem a oportunidade de compreender como inovações tecnológicas são recebidas por diferentes culturas. Um exemplo emblemático são os transgênicos: enquanto a ciência debate sua segurança, comunidades tradicionais podem rejeitá-los por razões simbólicas ou históricas.

“A biotecnologia não opera no vácuo. Ela intersecta com questões éticas, direitos indígenas e até mesmo com noções de ‘natural’ e ‘artificial’”, reflete a Dra. Helena Martins, pesquisadora em Bioética. Sem uma base antropológica, os biotecnólogos podem desenvolver soluções tecnicamente brilhantes, mas socialmente insustentáveis.

Ciências Biológicas: A Natureza sem a Cultura

Os cursos de Ciências Biológicas (Bacharelado e Licenciatura), ambos com quatro anos de duração, focam no estudo da vida em suas múltiplas formas. Porém, a ausência da Antropologia priva os alunos de ferramentas para entender como as sociedades humanas se relacionam com a biodiversidade. Para um biólogo que estuda ecossistemas amazônicos, ignorar o conhecimento tradicional de povos originários sobre plantas medicinais é perder séculos de sabedoria prática.

Já na Licenciatura, a lacuna é ainda mais grave: futuros professores deixam de aprender métodos para ensinar ciências de forma culturalmente sensível, essencial em um país plural como o Brasil. “Como discutir evolução em comunidades com visões de mundo distintas sem ferir identidades? A Antropologia oferece pontes”, argumenta o professor Carlos Ribeiro, mestre em Educação Científica.

Gestão Ambiental: Sustentabilidade sem Diálogo

O Bacharelado em Gestão Ambiental, também de quatro anos, prepara gestores para mediar conflitos entre desenvolvimento e preservação. No entanto, projetos ambientais frequentemente fracassam quando não consideram dinâmicas sociais. Um plano de reflorestamento pode ser tecnicamente impecável, mas se não dialogar com práticas agrícolas locais, será abandonado pela população.

“A sustentabilidade não é só uma questão ecológica, é cultural. Sem entender rituais, economia informal ou hierarquias comunitárias, o gestor ambiental trabalha no escuro”, alerta Mariana Souza, consultora em projetos socioambientais. A Antropologia forneceria mapas para navegar nessas complexidades.

O Preço da Fragmentação do Conhecimento

A interdisciplinaridade é um mantra nas universidades modernas, mas sem a Antropologia, cursos focados em ciências naturais perpetuam uma dicotomia ultrapassada: natureza versus cultura. Essa divisão ignora que problemas como pandemias, desmatamento e injustiça ambiental são fenômenos híbridos, onde vírus, políticas públicas e crenças locais se entrelaçam.

Além disso, a falta de diálogo com a Antropologia empobrece a pesquisa. Estudos em etnobiologia, por exemplo, dependem de colaborações entre biólogos e antropólogos para documentar saberes tradicionais. Sem essa ponte, universidades perdem oportunidades de inovação baseada em conhecimento ancestral.

Apelo por Currículos Mais Ousados

Algumas instituições já reconhecem a necessidade de integração. Na Universidade Federal do Amazonas (UFAM), disciplinas de Antropologia Ambiental são obrigatórias para cursos de ciências biológicas, resultando em projetos colaborativos com comunidades ribeirinhas. Os alunos aprendem que a biodiversidade não existe sem diversidade cultural.

Para as universidades que ainda não abraçaram essa visão, o desafio é urgente: formar profissionais que não apenas dominem técnicas, mas também saibam ler o mundo em suas múltiplas dimensões. Enquanto a Antropologia permanecer ausente, estaremos formando cientistas brilhantes, mas parcialmente cegos para as realidades que pretendem transformar.

O Futuro é Interdisciplinar

Em um planeta marcado por desigualdades ecológicas e culturais, a academia não pode se dar ao luxo de manter disciplinas em silos. A Antropologia não é um curso “extra”; é a chave para desvendar como a ciência pode ser, ao mesmo tempo, rigorosa e humana. Sua ausência não é apenas uma falha curricular — é uma renúncia ao papel da universidade como espaço de pensamento crítico e transformação social.

*Produtor Rural em Mato Grosso do Sul.

- Publicidade -

ENQUETE

MAIS LIDAS