Uma semana após o ataque a uma escola em Caxias do Sul (RS), a resposta de uma aluna ao ser advertida em sala de aula foi um baque para a professora Juliana ao dar aula em outro colégio da mesma cidade.
A professora distribuía papéis coloridos para uma atividade, limitados a um por aluno, quando a estudante reagiu à proibição de pegar mais uma folha: “É por isso que fazem o que fizeram na João de Zorzi”.
“Os professores agora evitam escrever no quadro para não ficar de costas”, relatou uma estudante à BBC News Brasil.
Um dia após o ataque, todas as escolas da rede municipal de Caxias do Sul tiveram aulas suspensas. Professores e funcionários foram acolhidos por psicólogos e equipes da Secretaria Municipal de Educação. A escola reabriu dois dias após o ataque, em 3 de abril.
Apesar do retorno rápido à rotina, a comunidade escolar ainda digeria o trauma. Na semana seguinte ao ataque, pais cogitavam transferir os filhos da João de Zorzi para outros colégios, e professores também se questionavam se ficariam ali.
“Os professores ainda estavam ganhando confiança novamente”, afirma o vice-diretor da escola, Gabriel Jean Boff. “Sempre vai ter um sentimento diferente, em especial para quem estava aqui no dia do ataque.”
A mãe de uma aluna do quarto ano diz que passou a acompanhar a filha até a escola todos os dias — antes, fazia isso só de vez em quando.
“Ela ficou medo e não entendeu bem o que aconteceu”, explica a mãe, que pediu para não ser identificada.
“Tivemos que explicar que ocorreu na sala dos alunos mais velhos e que algumas crianças podem ser más. Meu marido e eu cogitamos tirá-la da escola, mas ela disse que queria continuar para estar com as amigas.”
A secretária municipal de Educação, Marta Fattori, disse à BBC News Brasil que o patrulhamento foi reforçado na João de Zorzi e em outras unidades da região.
Também estão sendo discutidas medidas como colocar portões com campainha para controlar acesso de estranhos e botões de pânico que poderiam ser acionados em ataques e outras situações de emergência em escolas da rede. Na João de Zorzi, isso já foi feito.
Fattori também afirmou que o município retomou o programa Escolas de Paz, que prevê uma série de iniciativas para combater a violência nas salas de aula.
Após o ataque do início de abril, diz a secretária, o programa foi reforçado com a presença de equipes itinerantes nas escolas e implementação de projetos de mediação de conflitos.
O dia seguinte, dois anos antes
A 980 km de Caxias do Sul, a Escola Estadual Thomazia Montoro, em São Paulo, ainda vive o luto por um ataque em 2023.
As manhãs agitadas eram parte da rotina da escola, na época com mais de 300 alunos de ensino fundamental. Mas, em 27 de março daquele ano, o dia fugiu do normal.
“Foi algo fora da rotina”, lembra Cinthia da Silva Barbosa, que era professora de educação física na escola localizada na Vila Sônia, Zona Oeste de São Paulo. “Não era o barulho habitual de uma escola viva, com sons de crianças brincando e correndo. Era um som urgente, desorganizado.”
Naquele dia, enquanto dava aula, Cinthia viu que crianças de outras turmas desciam correndo a escada, em pânico. A professora pediu que seus alunos permanecessem na sala de aula e subiu no fluxo contrário.
“Encontrei com a coordenadora. Não lembro a sequência de palavras, mas lembro dela dizer: ‘Ele está armado. Cuidado’.”
Em uma das salas, viu uma professora caída no chão e outra colega sendo esfaqueada. Sem pensar muito, Cinthia imobilizou por trás o autor do ataque, um estudante de 13 anos. “Naquele momento, não ouvia mais nada. Só agi.”
A professora Elisabeth Tenreiro, de 71 anos, morreu no local. O aluno também feriu mais dois colegas e outras três professoras.
Ele vestia uma máscara de caveira e havia avisado nas redes sociais que estava “esperando por esse momento a vida inteira”. Na mochila, levou uma faca e a intenção declarada de matar o maior número possível de pessoas.
O agressor foi apreendido e levado para a Fundação Casa, em São Paulo.
Nos dias que seguiram o ataque, a escola foi o epicentro de uma comoção nacional. Recebeu psicólogos, voluntários — de ONGs a igrejas — e visitas de políticos, como o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos).
Seguindo recomendações de especialistas, a escola permaneceu fechada por 14 dias. Neste período, foi reformada e pintada — uma ação encorajada por pesquisadores no tema para ressignificar o espaço. Houve rodas de conversa, oficinas lúdicas, sessões de acolhimento. Até a merenda escolar foi diferente.
“Muitos voluntários foram nos acolheram, além dos alunos. Isso foi o que me deu mais força para continuar ali”, diz Cinthia.
As marcas do trauma
A professora Ana Clélia Rosa, de 60 anos, foi uma das vítimas do ataque. “Não tem como esquecer. Nesses dois anos, essas lembranças vão e voltam”, afirma.
Ela lembra que, ao tentar pedir ajuda para a colega Elisabeth, deu de frente com o agressor. “Só lembro da faca levantando. Caí e comecei a me defender como podia. Foram menos de dois minutos, mas pareceram uma eternidade.”
Antes de ser levada para a cirurgia, ainda no hospital, recebeu a visita do vice-governador do Estado, Felicio Ramuth (PSD). “Ele me perguntou como eu estava e se voltaria a dar aulas. Respondi que sim, assim que me recuperasse.”
Duas semanas depois, ela voltou à mesma sala onde havia sido atacada. “Cumprimentei meus alunos e vi na porta uma mancha de sangue. Por mais que tivessem limpado, você ainda via uma sombra mais escura. Isso foi o mais difícil de tudo, foi um grande descaso.”
Casos de violência extrema em escolas exigem protocolos específicos de acolhimento, pontua a psicóloga Elaine Alves, especialista em luto pela Universidade de São Paulo (USP), onde coordena o Núcleo de Intervenção Psicológica em Emergências e Desastres (Niped).
O atendimento após uma tragédia deve considerar o tipo de evento. “Não é a mesma abordagem para um suicídio, um homicídio entre estudantes ou um ataque com agressor ativo. Cada caso exige um plano de contingência próprio”, afirma.
No caso dos chamados ataques ativos, quando o agressor tem o objetivo de matar o maior número de pessoas sem especificar alvos, a orientação é que a escola feche por um período para conseguir se reorganizar.
“É necessário cuidar dos feridos, lidar com a morte e, ao mesmo tempo, planejar o dia seguinte”, pontua a psicóloga, que atuou no Thomazia Montoro após o ataque de 2023.
Ela afirma que o atendimento psicológico precisa ser imediato, contínuo e articulado com profissionais de diferentes áreas — saúde, educação e assistência social.
“Nos primeiros dias, o ideal é ter profissionais circulando pela escola, fazendo atendimentos móveis, rodas de conversa, acolhimento no pátio”, explica.
Os efeitos do trauma são duradouros, pontua Alves: “O estresse pós-traumático pode surgir 30 dias depois ou cinco anos depois. Por isso, a rede pública precisa garantir atendimento psicológico de longo prazo — algo que hoje, infelizmente, não se consegue fazer”.
Andrea Oliveira, que era secretária do Thomazia Montoro e estava trabalhando na escola no momento do ataque, carregou um trauma consigo por causa do que aconteceu.
“Pensei que encontraria um adolescente perturbado, arrependido. Mas não. Ele entrou com o peito estufado, sem hesitação”, diz ela, sobre o momento em que o agressor foi levado pela polícia.
Nas semanas seguintes, a secretária cuidou de tarefas burocráticas: receber visitas e voluntários, fazer ligações de checagem às famílias dos estudantes. “Nunca trabalhei tanto quanto naquele período.”
Andrea só começou a sentir os primeiros sintomas de estresse pós-traumático meses depois. O olhar do adolescente passou a ser uma cena recorrente em seus sonhos.
“Comecei com dores no corpo, depois vieram os pesadelos, a hipersensibilidade a sons. Hoje, qualquer barulho fora do comum de uma escola me assusta”, conta.
Hoje, ela não trabalha mais na Thomazia Montoro, é merendeira em outra escola. Em julho de 2024, mais de um ano após o ataque, passou a ser acompanhada por psicólogos.
A experiência também transformou Cinthia Barbosa. “Acho que cada um tem uma resposta diferente”, diz. Depois do episódio, a professora começou a cursar faculdade de direito e a pesquisar sobre prevenção a ataques escolares.
Em suas aulas de educação física, Cinthia passou a estimular ainda mais as vivências coletivas: jogos e atividades em grupo. “A escola precisa ser um espaço de socialização. Isolamento é sempre um sinal de alerta”, afirma.
“Não dá para traçar um perfil de aluno agressor. O que dá para fazer é criar vínculos, escutar, observar.”
‘Escola precisa ser escutada e cuidada’
O esforço de Cinthia para entender e buscar formas de evitar novos ataques se reflete em um movimento mais amplo. Pesquisadores têm tentado compreender por que esse tipo de violência tem crescido nas escolas brasileiras.
O país registrou ao menos 42 ataques a escolas entre 2001 e 2024 — mais da metade deles concentrados entre 2022 e 2024.
Os dados são do relatório Ataques de Violência Extrema às Escolas: Causas e Caminhos — Atualização, publicado pelo D3e – Dados para um Debate Democrático na Educação, com apoio da B3 Social e da Fundação José Luiz Setúbal.
O levantamento mostra que, entre 2001 e o fim do ano passado, 44 pessoas foram mortas em ataques a escolas no Brasil. Outras 113 ficaram feridas. Mais da metade dos ataques no país foi executada com facas, machados ou coquetéis molotov.
(Informações Terre)