fbpx

Desde 1968 - Ano 56

24.5 C
Dourados

Desde 1968 - Ano 57

InícioCulturaAs frutas contam outras histórias de Dourados-MS

As frutas contam outras histórias de Dourados-MS

Eduardo Martins (1) –

Descendo a Marcelino Pires rumo ao rio Dourados, chupei mangas e logo à frente, colhi limões na mesma rua em que peguei laranjas doces. Ali na Eulália Pires com a Onofre Pereira de Matos, altos do 336, naquela esquina tem um imenso pé de seriguela, pendendo de frutas maduras e muito suculentas que contam histórias de uma família numerosa e feliz e antiga que ali se estabeleceu, fez dali sua morada e da sua sombra o lugar de tardes felizes e memoráveis enquanto lugar fresco e de “ver gente” e de ser gente, um velho serigueleiro.

Ver gente ali, logo ali, acolá e Ala ide que na memória ficou.

As frutas contam outras histórias de Dourados-MS

Foi noutra esquina, num abacateiro que comi um madurinho, tudo isso sem sair da área urbana, e tinha uma goiabeira carregada de verdes, de vez e, aquelas madurinhas quase amarelas e graúdas, algumas bichadas como é de costume e comer os bichos da goiaba. O jatobazeiro exuberante, forte e imponente carregado daquela fruta que gruda na garganta, mas que tem um sabor exótico, ainda peguei pitangas e pitombas e acerola na Monte Alegre – nome justo – frutinhas pequenas e doces e gostosas e eu colhi e comi e gostei.

Já no lago que recebe as águas, no começo da Marcelino Pires, onde tem capivaras e capivarinhas nadando e pastando e sendo felizes, foi num alagadiço ali que vi um ingazeiro se debruçando num lamaçal, pesado de tanto ingá, fruta de baga doce e casca aveludada apessegada, chupei muitos, fartei-me, lembrei-me de esquecer dos tempos modernos. Dourados era é isso.

Vivia-me, curtia-me, dessapressadamente, sossegadamente. Sem tempo e sem pressa, naquele parque do lago, denominado Martins, nome de outro colonizador, seria mais justo e honesto o parque receber um nome indígena, tupi-guarani, que teve relações diretas com este lugar belo e natural.

Já saindo rumo ao mato tinha as guaviras, também chamadas de gabiroba, esta sim com terminologia guarani wa’bi rob, que  significa “árvore de casca amarga” e a fruta sendo doce como mel. Colhi mel de araçá, jataí e todos os tipos de abelhas e flores. Neste tipo de bioma o cerrado, ou a savana que se daria um nome de uma população indígena habitante deste lugar os Xavante, por habitarem a “shavana”, ou savana.

Foi mais adiante que comi jaca, chupei as bagas doces, me lambuzei e saciei minha fome e sede e paz, me enchi de paz embaixo da jaqueira, gigante, imponente, copada fechada, me refresquei na sua generosa sombra. E fui grato.

Frutas que a natureza dá, de graça, graças a chuva mansa de Dourados e do sol quase que, simultaneamente, banham as terras férteis dessa cidade antiga habitada pelos povos originários; Guarani, Kaiowá, Terena, que vivem aqui e conhecem tudo isso na palma da mão e convivem com essa natureza em harmonia e respeito com a terra que é frutífera.

É fácil entender que em passados remotos e não tão assim, essa população humana de homens, mulheres, crianças, sobretudo de velhos eram muito felizes por essas bandas, vivendo de pequenas caças e principalmente de coleta das frutas que hoje insistem em revelar parte da história da natureza que compôs e foi composta na simbiose da vida, sem hierarquia, onde os três reinos se misturavam; animal, vegetal e mineral, compondo-se em uma só coisa; vida.

Não é tão difícil assim saber como e porque Dourados tem a maior população indígena do Estado de Mato Grosso do Sul (MS) 11 mil almas de acordo com o senso do IBGE, 2010, bem defasado e que na atualidade teve um aumento significativo, provavelmente 20 mil, quase dobrou, o que prova que eles resistem, existem e crescem. Por sua vez, o MS possui a segunda maior população de povos originários do Brasil, 70 mil pessoas (IBGE, 2010).

É descer a Marcelino Pires rumo ao rio Dourados e ver a grande quantidade de frutas que pendem dos galhos, nas ruas, praças e bosques que é possível imaginar o que era essa cidade e essa região num passado recente; o lugar ideal para se estabelecer habitação, família, ritos, religiosidade, costumes, enterrar seu mortos.

Assim, fica muito fácil saber e estabelecer com certeza absoluta que todas essas terras eram de propriedade das nações indígenas que aqui se encontram, propriedade por usufruto, usucapião e demais termos que os dotô em “dereito” quiser usar, donos das terras porque faziam cumprir sua função social; semeadura, plantio, colheita e alimentação das pessoas, donos porque enterravam seus mortos nela, faziam dela seu lugar sagrado.

Por fim, é só ver, olhar e ver, mas podem comer também as frutas que a cidade dá de bom grado.

Quem tem olhos que escute.

As frutas contam outras histórias de Dourados-MS

Eduardo Martins, em 18 dias de fevereiro, no ano 523 da invasão portuguesa contra as terras indígenas e também alguns séculos da invasão de paulistas, gaúchos e mineiros contra as terras do Rio Dourados, terras de propriedade dos povos caçadores e coletores de frutas daqui.

[1] Professor adjunto III do curso de história – UFMS-CPNA, campus de Nova de Andradina, curso de História. Autor dos livros “A invenção da vadiagem”, editora CRV, 2011. https://www.editoracrv.com.br/produtos/detalhes/3341-detalhes

 e “OFAIÉ Eu estou na estrada – Hägaté te tahfwa (Nova Andradina e Vale do Ivinhema)”, editora Life, 2022.

- Publicidade -

ENQUETE

MAIS LIDAS