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Alô prefeito, Dourados perde ao priorizar carros e esquecer as pessoas

Mário Cezar Tompes da Silva (*) –

Quando comparamos os últimos gestores municipais a frente da prefeitura de Dourados, independentemente das particularidades de cada um, há um ponto em comum que une todos eles. O receituário que adotam para lidar com a mobilidade urbana e os problemas do trânsito em Dourados.

Eles abraçam, quase por inércia, sem questionamentos, um modelo de mobilidade carrocêntrico. O termo é autoexplicativo; trata-se de pensar soluções para o trânsito que priorizem o fluxo dos automóveis particulares. Os demais modais (transporte público, cicloviário e pedestrianismo) são figurantes no espetáculo do trânsito douradense e recebem atenção residual.

Esse desbalanceamento de prioridades fica evidente nos investimentos direcionados para os tapa buracos e recapeamentos das vias que servem os automóveis em contraste com o abandono das calçadas que servem os pedestres. Abandono agravado pela omissa fiscalização da prefeitura sobre as intervenções irregulares realizadas nelas. Todos os douradenses conhecem o caos que são nossas calçadas, o que me dispensa de esmiuçá-lo aqui.

Esse desbalanceamento se expressa igualmente no foco pela ampliação e fluidez do sistema viário, garantindo sua continuidade nos novos loteamentos e ampliando sua capacidade de fluxo com a frequente duplicação de avenidas o que se contrapõe com a timidez de expansão do sistema cicloviário. Nas poucas oportunidades que a expansão cicloviária ocorre restringe-se a implantação de trechos isolados, desconectados de uma rede. São ciclovias Frankenstein: pedaços soltos de vias que ligam nada a lugar nenhum.

É evidente também o imobilismo na ampliação e aprimoramento do sistema de transporte coletivo de Dourados. Em um centro urbano que soma mais de 240 mil habitantes, nosso transporte de passageiros ainda funciona com base em um sistema radial antiquado que utiliza um único terminal de transbordo, quando necessitaria de quatro desses terminais para disponibilizar eficiência, rapidez e conforto para seus usuários.

Porém, o sinal mais notório do papel de figurantes desses modais e de seus usuários (pedestres, passageiros de ônibus e ciclistas) é o engavetamento eterno dos projetos que os beneficiam. Desde 2013 a prefeitura dispõe de um Projeto de Reestruturação do Transporte Coletivo e desde 2018 há um Plano Diretor de Mobilidade Urbana que inclui um projeto para rede cicloviária e um outro denominado projeto calçada legal. O primeiro completou aniversário de doze anos de existência e o segundo de sete anos. Jamais foram implementados.

A opção carrocêntrica não ocorre sem consequências para a cidade e seus moradores. Além de transformar ciclistas, pedestres e passageiros em cidadãos menos graduados cujas necessidades podem ser ignoradas, essa opção preferencial pelos automóveis corrompe a qualidade da vida na cidade, eliminando os espaços que tornam a convivência urbana uma experiência vital, prazerosa e estimulante.

Os automóveis têm uma característica peculiar, eles possuem fome por espaço. Quando se multiplicam exigem nacos cada vez maiores da cidade. Há várias manifestações desse apetite poderoso.

No passado, Dourados apresentava uma exuberante cobertura de mata atlântica que no decorrer do tempo foi sendo substituída por áreas de lavoura. No entanto, e de forma surpreendente, restaram algumas raras manchas dessa luxuosa mata original em alguns fundos de vale que serpenteiam pela cidade. E uma das mais extensas e belas dessas áreas vegetadas é a do vale do córrego Água Boa.               

O que fazer com esse que é um dos últimos patrimônios a reunir uma rica comunidade de flora e fauna regional? Que destino reservar para esse pequeno pulmão em uma cidade com o ar já tão sacrificado pelas queimadas e pelo gás carbono dos carros? Após examinar de maneira muito criteriosa e ponderar escrupulosamente as alternativas, nossos gestores enfim apresentaram sua decisão: rasgar a mata com uma extensa avenida, pomposamente alcunhada de via parque.

Poderia não ser assim, outras cidades brasileiras apresentaram posturas muito distintas. Por exemplo, no século XIX, a mata atlântica que circundava o Rio de Janeiro havia sido posta a baixo pelas plantações de café e cana. Em 1861, quando ainda se desconhecia discurso ambientalista, sustentabilidade e crise ambiental, D. Pedro II tomou a decisão de iniciar um reflorestamento pioneiro que resultou no plantio de centenas de milhares de árvores. Essa área posteriormente foi transformada no atual Parque Nacional da Tijuca. Espaço de inegável poder cênico que valoriza incrivelmente a cidade e cumpre um papel ambiental essencial.

É possível imaginar um gestor municipal cortar a floresta da tijuca com uma via de tráfego? Não? Pois bem, em Dourados é! Tomado pela mentalidade carrocentrista nossos gestores abriram uma avenida no coração da mata do Água Boa.

Por sorte, o atual prefeito decidiu não dar prosseguimento ao último trecho que faltava para a conclusão de todo o percurso inicialmente previsto. Embora boa parte dele já esteja implantado e prestes a ser inaugurado. A entrega provavelmente será muito festejada como uma solução bem-vinda que propiciará maior facilidade ao trânsito e possibilitará acesso mais eficiente a bairros diversos da cidade.

O apetite de nossa imparável frota de automóveis já abocanhou muitas outras áreas da cidade. Em 2012, o calçadão da Nelson de Araújo, situado em frente à Escola Presidente Vargas e que facilitava o deslocamento dos estudantes até a Av. Weimar foi, da noite para o dia, removido e substituído por uma avenida. De nada adiantou o protesto dos estudantes que se contrapuseram àquela medida intempestiva do poder público.

A justificativa era que o local se encontrava degradado e abandonado. Mas frente a essa situação, colocava-se para a prefeitura duas alternativas: requalificação do local a fim de preservar o calçadão, e, nesse caso, como um espaço melhor estruturado e atraente para as pessoas. Isso seria muito benéfico porque aquele trecho do calçadão concentrava na época vários restaurantes, bares e sorveterias. E a outra opção era substituir o calçadão por uma avenida. A mentalidade rodoviarista do gestor do período decidiu subtrair aquele espaço de pedestres e ofertá-lo graciosamente aos automóveis. Além de incorporar o fluxo de carros, o local revelou-se muito útil ao transformar-se em um generoso estacionamento de automóveis. Isso foi possível porque os canteiros centrais que deveriam ser áreas verdes também foram sacrificados e convertidos em vagas de estacionamento para carros.

Mais recentemente a marcha irrefreável dos automóveis exigiu nacos da área do Parque Antenor Martins. E apesar daquele parque ser uma local de preservação ambiental a exigência foi satisfeita. O trecho subtraído do parque será destinado a duplicação das avenidas que contornam aquela área de preservação ambiental. A justificativa? Melhorar o fluxo do trânsito, dinamizar a conexão do sistema viário da cidade etc. A ladainha habitual.

Canteiros centrais, ciclovias e calçadas são vítimas sistemáticas do apetite dos automóveis. Em Dourados, muitos canteiros e suas áreas verdes foram convertidos em vagas de estacionamento. Uma embrionária rede de ciclofaixas implantada em 2003 não resistiu. Com base no argumento de que retirava espaço dos carros e atrapalhava o trânsito foi removida. Hoje, totens retorcidos e enferrujados que a sinalizavam são o testemunho de que um dia Dourados contou com uma rede de ciclofaixas.

Já as calçadas enfrentam a pressão dos carros há tempos. Uma parcela da população já estacionava frequentemente em cima das calçadas, ainda que fosse irregular. Em 2021, a prefeitura, enfim, decidiu tomar providências. Quais? Apertar a fiscalização? multar? Para que tanto rigor? Melhor regularizar em lei a possibilidade de automóveis subirem a calçada e estacionarem no recuo frontal de residências, comércio, serviços etc. A partir daí as calçadas foram transformadas em rampas de acesso para os carros.

Por outro lado, como a fiscalização da prefeitura é falha, estou usando de modéstia, motoristas não distinguem recuo frontal de calçadas e estacionam ocupando boa parte destas. Não raro, ocupam calçadas que nem recuo frontal possuem. Resultado: a lei deseducou os motoristas. Subir as calçadas com os carros tornou-se um hábito cotidiano dos douradenses.

Esse modelo de mobilidade abraçado pelos prefeitos douradenses está em descompasso com o resto do mundo e com o momento em que vivemos. Ele é injusto porque penaliza cruelmente os socialmente mais fragilizados que se deslocam a pé, de bicicleta e de ônibus. Ele mata e mutila. A cada ano cresce a legião de motociclistas e ciclistas que perdem a vida ou tornam-se mutilados permanentes. Ele também é ineficiente, a frota de automóveis cresce geometricamente, aumentando a lentidão do trânsito e envenenado o ar com CO2.

Já as cidades que estão na vanguarda da mobilidade adotam estratégia inversa. No lugar de priorizar os carros, promovem a multimobilidade. Os cidadãos têm a liberdade de escolher entre um leque de alternativas eficientes e de boa qualidade para deslocamento. Podem optar entre transporte coletivo, ciclovias, calçadas e automóveis de acordo com sua conveniência.

Aos douradenses, resta o apelo óbvio: Alô sr. prefeito, é hora de desengavetar o Plano Municipal de Mobilidade Urbana!

(*) Professor de Planejamento Urbano.    E-mail: [email protected]

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