Desde 1968 - Ano 56

32.6 C
Dourados

Desde 1968 - Ano 57

InícioColunista'A sereia, o silêncio e o país que ainda pode se reconhecer',...

‘A sereia, o silêncio e o país que ainda pode se reconhecer’, por Pedro Machado Mastrobuono

– Por Pedro Machado Mastrobuono, Presidente da Fundação Memorial da América Latina; pós-doutor em Antropologia Social; agraciado pelo Senado Federal com a Comenda Câmara Cascudo por sua trajetória na defesa do patrimônio cultural brasileiro

Nos últimos dias, enquanto o Memorial da América Latina recebia um gesto raro e luminoso do governo mexicano, por meio do cônsul Rodrigo, senti que um fio simbólico se unia entre o passado e o futuro do nosso continente. Ele nos presenteou com materiais didáticos produzidos nas línguas originais dos povos mexicanos. São cartilhas, livros e cadernos escolares impressos em náuatle, maia, otomí e tantas outras línguas que habitam o México profundo. Não se trata apenas de bibliografia. Trata-se de um país que reconhece formalmente que a sua identidade se funda nos povos originários, que a sua história começa antes da conquista e que o sentimento de pertencimento é fortalecido quando a escola abraça, ensina e honra a pluralidade das suas raízes.

Como pós-doutor em antropologia social, venho há muito defendendo que o Brasil está atrasado nesse ponto. Nossa formação cultural é ampla, rica e ancestral, mas o material didático ainda apresenta lacunas graves. Muito antes da chegada dos europeus, o Sul da Amazônia já abrigava um sistema agrícola estruturado em torno da mandioca, com mil anos de aperfeiçoamento tecnológico indígena. O Estado do Pará produz hoje milhões de toneladas de mandioca por ano (alcançou 19 milhões de toneladas em 2024, segundo o IBGE) e mesmo assim os livros escolares ignoram esse ciclo agrícola originário. A escola ainda ensina o ciclo do açúcar e o ciclo do café, como se esses dois capítulos bastassem para explicar a formação civilizatória do país. O resultado é um Brasil que não se reconhece, que se olha no espelho com uma imagem deformada pela ausência.

Por isso, esta mesma semana marca um passo histórico no Memorial da América Latina. No âmbito do CBEAL, o Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos, diretoria que abriga a cátedra da UNESCO no Memorial, criamos o nosso Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros, o NEAB do Memorial. A decisão foi amadurecida por meio de rodadas de diálogo com NEABs de diversas universidades brasileiras, incluindo o recém-inaugurado núcleo da Unicamp, que integra ensino, pesquisa e extensão em torno da vida e da história da população afro-brasileira. Seguindo essa inspiração e essa demanda histórica, o CBEAL passa agora a organizar um NEAB próprio, que será ponto de intercâmbio de pesquisadores, projetos conjuntos e redes de trabalho entre diferentes instituições. É apenas a primeira etapa para a consolidação de um futuro Centro de Referência Latino-Americano da Diáspora Negra.

Era para ser uma semana de celebração. Mas o Brasil insiste em nos lembrar, com violência, que ainda há feridas abertas. Nesta mesma semana, uma escola municipal de ensino infantil (emei), na zona oeste de São Paulo, foi invadida por quatro policiais armados, um deles portava uma metralhadora, após o pai de uma aluna de quatro anos se incomodar com atividade escolar sobre orixás (sua filha havia feito um desenho de Iansã).  O mural com desenhos produzidos pelos demais alunos foi destruído. É impossível naturalizar o que aconteceu. É sintoma de uma patologia nacional. Quando a sociedade reage com agressão à presença da cultura afro-brasileira, o que se ataca não é um grupo específico, mas a própria espinha dorsal do Brasil. É o país golpeando a si mesmo.

Foi nesse clima dual, entre avanço e retrocesso, que retornei ao quadro Sereia, de Alfredo Volpi, que compartilho aqui pela sua força simbólica. Tenho a honra de ter sido sócio-fundador e presidente do Instituto Alfredo Volpi, e o privilégio de ter convivido com o artista, que era muito amigo do meu pai. Poucos brasileiros, talvez, sintetizam tanto da nossa identidade quanto Volpi. Um imigrante italiano que viveu com os pais até os cinquenta anos, que se casou com uma mulher negra, neta de escravos, com quem criou dezenove crianças. Dentre elas, Djanira Volpi, negra, seguidora de religião de matriz africana, sempre consciente e orgulhosa de sua herança espiritual. Essa família gerada na travessia entre Europa, África e Brasil é, por si só, um Brasil inteiro.

Volpi costumava dizer que sua Sereia não era Iemanjá, como muitos imaginam, mas uma figura do imaginário místico e sincrético do Brasil. Uma sereia que se aproxima da lenda indígena de Iara, a mãe-d’água de olhos amendoados, que seduz e encanta, mas também guarda segredos das nossas origens ameríndias. No misticismo popular, explicava ele, as sereias ocupam uma camada abaixo dos orixás. São intermediárias entre o humano e o sagrado, entre a terra e o mistério. E não é precisamente nesse lugar intermediário que se encontra a alma brasileira? Entre o visível e o invisível, entre o que sabemos e o que esquecemos, entre as águas profundas que nos convidam a ouvir nossas próprias raízes.

A sereia de Volpi é o retrato de um Brasil que não cabe em narrativas simplificadas. Um Brasil feito de mestiçagens, de sincretismos, de povos originários, de diásporas africanas, de oceanos cruzados e de rios que guardam memórias. Um Brasil que existe apesar dos silêncios e que sobrevive apesar das tentativas de apagamento.

O que ocorreu em Brasília é um sinal perigoso de que certas forças desejam produzir esse apagamento. Rejeitar um segmento social como se ele não existisse, negar sua memória, tolerar apenas sua presença periférica, quando na realidade constitui o núcleo duro da identidade do povo brasileiro, é tão grave quanto uma doença autoimune. É o corpo atacando a si mesmo. É o tecido social enfraquecendo até o risco de colapso.

Eu empresto aqui a minha voz para dizer, em solidariedade, que isso é inaceitável. Os culpados devem ser identificados e punidos exemplarmente. As feridas precisam ser tratadas e não ampliadas. E, sobretudo, o silêncio diante da injustiça não pode ser opção. De todos os pecados, o que mais me assombra é a omissão.

Tenho defendido em livros, artigos e na prática institucional do Memorial que a cultura brasileira só encontrará plenitude quando reconhecer que sua matriz originária é indígena e negra, quando assumir que a identidade nacional não é uma invenção tardia, mas uma construção contínua de povos que resistiram, criaram e sustentaram este país.

A sereia de Volpi nos olha de volta com serenidade e com firmeza. Ela é memória e aviso. Ela é beleza e responsabilidade. Ela nos diz que o Brasil só será inteiro quando aprender a honrar suas águas profundas, seus ancestrais, suas línguas, seus deuses, seus mitos e seus filhos. Quando a escola ensinar o que fomos. Quando o Estado proteger o que somos. Quando a sociedade não permitir que a violência substitua o respeito.

Se soubermos ouvir essa sereia, ainda há esperança para o Brasil.

[email protected]

- Publicidade -

ENQUETE

MAIS LIDAS