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Desde 1968 - Ano 56

InícioColunista'A dúvida', de Julio Pompeu

‘A dúvida’, de Julio Pompeu

Julio Pompeu (*) –

– Será? Ainda não estou certo. É preciso analisar com mais cuidado.

Visto de dentro da sala espaçosa e fresca de ar condicionado, o calor agonizante da tarde dava à cidade um ar preguiçoso que não combinava com a agitação de ânimos daqueles dias, mas que harmonizava perfeitamente com o tom de voz vago e melancólico do Doutor Amâncio.

– Mas as provas são mais do que evidentes. Veja só! Aliás, já estamos vendo a fumaça destes fatos há dois anos. Dois anos! Faltava só o fogo. Agora, nem isso! Que dúvidas Vossa Excelência ainda tem?

– Há situações que devemos enfrentar com calma, para não corrermos o risco de sermos injustos. Não se pode decidir sobre algo tão grave assim no calor do momento.

– Que calor? Que calor? Estamos há dois anos investigando, reunindo provas, depoimentos, documentos, imagens. Não há açodamento algum. O que temos é um incêndio! E temos que agir agora. Agora, Doutor Amâncio!

– Doutor Clêon, eu sei da gravidade dos fatos imputados. Mas tenho receio de colocarmos ainda mais lenha na fogueira acusando injustamente.

– Nós vimos o que aconteceu em janeiro. Agora, não temos mais dúvidas, foi a execução de um plano organizado por eles. Com a participação e comando dele. Se não fizermos nada agora, depois que todo mundo já está sabendo dos fatos, aí sim vai esquentar ainda mais essa fogueira, Doutor!

A entrada do garçom interrompeu a conversa. Serviu café com a polidez exagerada que lhe era habitual. “Cuidado com a xícara, Doutor! O café está muito quente”. Foram precisos alguns goles para retomarem a conversa após a saída do garçom.

– Um!… Acho que queimei a língua!…

– O garçom lhe avisou do mesmo jeito que estou lhe avisando agora. Se não tivermos certeza absoluta, podemos nos queimar.

– Tenho certeza absoluta!

– Mas eu ainda não estou totalmente convencido. E há muita gente neste país que concorda comigo. Essas pessoas já estão, inclusive, de cabeça quente com toda essa situação. Podem fazer mais alguma loucura.

– Loucura é nós não fazermos nada. Temos que prendê-lo. Agora! Enquanto o assunto está quente na imprensa.

– Mas nós estamos fazendo alguma coisa. Aliás, muita coisa. Tenho conversado com muita gente sobre o assunto para abaixar a pressão e termos calma para fazer nosso trabalho. Tenho usado tanto o celular esta semana que ele está ardendo como brasa.

– Doutor, doutor… peço desculpas pela minha franqueza, mas nosso trabalho não é o de telefonar para muita gente. Temos que denunciá-lo. E prendê-lo. E já! Antes que coloquem fogo ou explodam algum prédio. Já tentaram isso. Tentaram até matar! O que falta para Vossa Excelência se convencer?

– Provas mais robustas. Que não virem brasas.

– Temos as mensagens entre eles. Temos documento, com plano de assassinatos, impresso dentro do Palácio. Temos testemunhas. Temos a minuta de um decreto para tomarem o poder com a desculpa de apagarem o incêndio que eles mesmos provocaram. Mais uma vez, o que falta?

Um vento frio tomou conta da sala quando o assessor entrou, interrompendo mais uma vez a conversa.

– Doutores, boa tarde, com licença. Desculpe a interrupção, Doutor Amâncio, mas é sobre o processo de que lhe falei ontem, como disse, há alguma pressa porque…

– É sobre aquele dos traficantes?

– Sim senhor, quer dizer, há duvidas sobre ser tráfico ou uso porque temos apenas a quantidade maconha e…

– Sim, eu sei. Fale para o Doutor Prepúcio denunciar e pedir logo a prisão deles. Deixar esse tipo de gente na rua é um perigo… Ah! Aproveite e peça para alguém diminuir a temperatura do ar. O café está esfriando muito rápido.

(+) Escritor e palestrante, professor de Ética do Departamento de Direito da UFES, ex-secretário de Direitos Humanos no ES.

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