(*) Por Marcos Granzotti
Em meio às vastas plantações que alimentam o Brasil e o mundo, uma tragédia silenciosa se desenrola longe dos olhos urbanos. Produtores rurais brasileiros estão tirando suas próprias vidas em taxas alarmantes, um fenômeno que permanece invisível nos noticiários nacionais, mas que representa uma crise humanitária e de saúde pública que não podemos mais ignorar.
Os Números que Ninguém Vê
Embora os dados específicos sobre suicídio rural no Brasil sejam escassos – reflexo do próprio silenciamento do tema – pesquisas regionais e internacionais revelam um cenário preocupante. Em estados com forte tradição agrícola como Rio Grande do Sul e Santa Catarina, as taxas de suicídio superam significativamente a média nacional.
Um estudo da Universidade Federal de Santa Maria identificou que, em certas regiões rurais gaúchas, as taxas de suicídio chegam a 16 por 100 mil habitantes – quase o dobro da média nacional de 6,6 por 100 mil. Mais alarmante ainda: para cada suicídio consumado, estima-se que existam pelo menos 20 tentativas não registradas.
A Tempestade Perfeita no Campo Brasileiro
O que leva um produtor rural, tradicionalmente resiliente e acostumado a enfrentar adversidades, a considerar o suicídio como única saída? A resposta está em uma convergência devastadora de fatores econômicos, ambientais, sociais e psicológicos.
Um Sistema Financeiro que Sufoca
O endividamento rural no Brasil atingiu níveis históricos. Segundo dados do Banco Central, a dívida rural ultrapassou R$ 250 bilhões, com taxas crescentes de inadimplência. Para muitos pequenos e médios produtores, esta realidade significa uma espiral de desesperança.
“Investi tudo o que tinha e o que não tinha na safra. Quando veio a seca, perdi 70% da produção. O banco não quer saber se choveu ou não, quer receber. Vendi equipamentos, parte da terra, e ainda assim a dívida só aumenta”, relatou um produtor de soja do Mato Grosso, antes de sua tentativa de suicídio.
A volatilidade de preços, o aumento constante nos custos de insumos e a falta de mecanismos eficazes de proteção financeira criam uma pressão econômica insustentável.
Quando o Clima Vira Inimigo
As mudanças climáticas transformaram o já arriscado negócio agrícola em uma verdadeira roleta russa. Secas históricas, inundações devastadoras como as recentemente observadas no Rio Grande do Sul, geadas fora de época e novos padrões de pragas e doenças destroem não apenas safras, mas sonhos e projetos de vida.
“Em 30 minutos de granizo, perdi o trabalho de anos. Como recomeçar aos 58 anos?”, questionou um produtor de café do Sul de Minas, após ver sua lavoura completamente destruída.
A Solidão que Adoece
O isolamento no campo brasileiro vai muito além da distância geográfica. O êxodo rural esvaziou comunidades, deixando propriedades cada vez mais distantes umas das outras. Jornadas de trabalho extenuantes, do nascer ao pôr do sol, não deixam tempo para interações sociais.
Mais doloroso ainda é o abandono familiar involuntário. “Criei cinco filhos, todos foram para a cidade. Minha esposa faleceu há três anos. Agora sou só eu e o cachorro nesta casa onde antes havia tanto barulho e vida”, desabafou um idoso produtor do interior do Paraná.
Pesquisas da UFRGS indicam que produtores rurais que vivem a mais de 30km de centros urbanos e têm contato social limitado apresentam risco 76% maior de desenvolver depressão grave.
O Deserto de Cuidados em Saúde Mental
Quando a dor emocional se torna insuportável, o produtor rural raramente encontra ajuda acessível. Apenas 4% dos psiquiatras brasileiros atuam em municípios com menos de 50 mil habitantes, e 43% dos municípios brasileiros não possuem nenhum psicólogo no sistema público de saúde.
A esta escassez de serviços somam-se barreiras culturais profundamente enraizadas. A cultura rural tradicionalmente valoriza o estoicismo e a autossuficiência, especialmente entre homens. Buscar ajuda para problemas emocionais é frequentemente visto como sinal de “fraqueza” – um estigma que pode ser fatal.
O Veneno Invisível
Um fator frequentemente ignorado nesta equação é a exposição crônica a agrotóxicos. Estudos da FIOCRUZ e UFMT estabeleceram correlações preocupantes entre a exposição prolongada a certos pesticidas (especialmente organofosforados) e o aumento significativo no risco de depressão e comportamento suicida.
Regiões com uso intensivo de determinados agrotóxicos apresentam taxas de suicídio até 35% maiores que a média nacional. Estes produtos podem interferir na função de neurotransmissores como serotonina e dopamina, fundamentais para a regulação do humor.
Quando o Futuro Desaparece
Para muitos produtores rurais, especialmente os mais idosos, a falta de sucessão representa uma profunda crise existencial. Dados do IBGE indicam que apenas 2 em cada 10 propriedades rurais familiares têm sucessão garantida.
“Meu avô foi produtor, meu pai foi produtor, eu sou produtor. Agora, vou ter que vender tudo e ir para a cidade. O que serei lá? Não sei fazer outra coisa. Sem a terra, não sou ninguém”, expressou um pequeno produtor do interior de São Paulo.
Esta perda de identidade e propósito, combinada com a crescente desvalorização social da atividade rural, cria um vazio existencial devastador.
Sinais de Alerta que Todos Deveríamos Conhecer
No contexto rural, os sinais de alerta de risco suicida podem manifestar-se de formas específicas e diferentes do ambiente urbano:
Negligência súbita com animais ou plantações anteriormente bem cuidados.
Venda precipitada de equipamentos ou animais abaixo do valor de mercado.
Ausência em eventos comunitários tradicionalmente frequentados.
Comentários sobre “desistir de tudo” ou referências a produtores que “desistiram”.
Preocupação obsessiva com o futuro da família “quando eu não estiver mais aqui”.
Caminhos para a Esperança: O Que Pode Ser Feito
Esta crise exige uma resposta urgente e multidimensional:
Políticas Públicas Necessárias;
Programa Nacional de Saúde Mental Rural: Com equipes móveis e telemedicina subsidiada;
Reestruturação Financeira Rural Emergencial: Incluindo moratória temporária para regiões afetadas por desastres e renegociação de dívidas com carência estendida;
Seguro rural ampliado e acessível: Proteção financeira efetiva contra eventos climáticos extremos;
Programa de sucessão rural sustentável: Apoio à transição geracional nas propriedades.
O Papel das Comunidades
Formação de “guardiões rurais” – pessoas da comunidade treinadas para identificar sinais de risco. Criação de grupos de apoio entre produtores. Eventos comunitários regulares que combatam o isolamento social. Valorização e preservação de tradições rurais que promovam senso de pertencimento.
Responsabilidade da Sociedade Urbana
A sociedade urbana, principal consumidora dos produtos do agronegócio, tem responsabilidade nesta questão:
Reconhecimento do valor real dos alimentos e de quem os produz;
Compreensão dos desafios enfrentados por quem trabalha no campo;
Apoio a políticas públicas que protejam produtores rurais;
Consumo consciente, preferindo produtos de cadeias que valorizam o bem-estar do produtor.
Um Chamado à Ação
O suicídio no meio rural brasileiro não é apenas uma tragédia pessoal e familiar, mas um sintoma de problemas estruturais que afetam a sustentabilidade do nosso sistema alimentar. Cada vida perdida representa não apenas uma história interrompida, mas também conhecimentos, tradições e capacidade produtiva que desaparecem.
Como sociedade, não podemos mais virar as costas para esta realidade. O produtor rural que hoje contempla o fim como única saída pode, com o suporte adequado, redescobrir o sentido de seu trabalho e a esperança em um futuro digno.
Afinal, quem alimenta o Brasil merece, no mínimo, ser visto, ouvido e valorizado. Esta é uma dívida que temos com aqueles que, diariamente, garantem que haja comida em nossas mesas.
(*) MARCOS ANTONIO GRANZOTTI BILLY – Advogado Criminalista. Graduado em Direito pelo UNIGRAN – Centro Universitário da Grande Dourados. Especialização em Direito Penal e Processo Penal pela Escola de Direito da Associação Sul-Mato-Grossense dos Membros do Ministério Público (EDAMP).