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A ausência que silencia: A urgência da antropologia em Dourados e no Sul de Mato Grosso do Sul

Reinaldo de Mattos Corrêa (*) –

No coração do Brasil, onde o cerrado se encontra com histórias ancestrais, Dourados emerge como um microcosmo de contradições e potências. Cidade marcada pela convivência tensa entre o agronegócio pulsante e comunidades indígenas resistentes, como os Guarani-Kaiowá e Terena, e por fluxos migratórios que trouxeram gaúchos, paranaenses e nordestinos, o município carrega em seu solo uma geografia humana complexa. No entanto, há uma lacuna que ecoa como um grito abafado: a inexistência de um curso de graduação em Antropologia nas universidades públicas locais. Essa ausência não é apenas acadêmica; é um apagamento político, cultural e existencial que reverbera em prejuízos concretos para a população douradense e sul-mato-grossense.

  1. O Epistemicídio e a Voz dos Invisíveis

A Antropologia, ciência que decifra os códigos simbólicos da humanidade, é ferramenta essencial em regiões pluriculturais como Dourados. Sem ela, perde-se a capacidade de traduzir narrativas marginalizadas. As comunidades indígenas, por exemplo, enfrentam disputas territoriais históricas, muitas vezes tratadas como “casos de polícia” em vez de questões civilizatórias. A falta de antropólogos formados localmente significa que poucos profissionais dominam as línguas, rituais e estruturas sociais desses povos, resultando em mediações enviesadas e políticas públicas desconectadas da realidade. O epistemicídio — a morte de saberes não hegemônicos — avança quando a academia não se enraíza no território que estuda.

  1. O Êxodo Forçado e a Desigualdade Educacional

Jovens sul-mato-grossenses interessados em estudar sociedades humanas são obrigados a migrar para centros distantes, como São Paulo ou Rio de Janeiro, perpetuando um ciclo de dependência intelectual e financeira. Muitos, impossibilitados de custear a vida em outras unidades federativas, abandonam o sonho da graduação. Assim, a falta do curso reproduz desigualdades: quem nasce em Dourados tem menos acesso a ferramentas para compreender e transformar sua própria realidade. A universidade, que deveria ser farol de emancipação, torna-se mais um muro.

  1. O Silêncio sobre as Feridas Sociais

Dourados é palco de conflitos agrários, violência contra povos originários, e tensões urbanas alimentadas por segregação socioespacial. Sem a Antropologia, perde-se a capacidade de analisar criticamente essas feridas. Como entender a dinâmica dos assentamentos rurais sem estudos etnográficos? Como combater o racismo estrutural sem desvendar suas raízes culturais? A ausência do curso deixa a região órfã de pesquisas que poderiam embasar políticas de inclusão, revelando, por exemplo, como a identidade quilombola resiste no interior do estado ou como as periferias urbanas reinventam modos de existir.

  1. O Desprezo pela Economia do Saber

Investir em Antropologia não é apenas uma questão social — é estratégia econômica. Um curso desse porte atrairia pesquisadores nacionais e internacionais, gerando empregos, fomentando publicações e projetos interdisciplinares (como arqueologia, agroecologia e direito indígena). Além disso, profissionais locais formados poderiam assessorar prefeituras, ONGs e empresas em temas como diversidade cultural e sustentabilidade, temas urgentes em um estado pressionado pelo agronegócio e turismo ecológico.

  1. A Perda do Futuro Memória

Ao negar à população o direito de estudar sua própria humanidade, risca-se do mapa a possibilidade de construir um futuro que dialogue com o passado. A Antropologia preserva memórias orais, práticas tradicionais e modos de vida ameaçados. Em Mato Grosso do Sul, onde o apagamento indígena é política velada, cada geração que se forma longe daqui é uma geração que desconhece as raízes do chão que pisa.

Conclusão: Antropologia como Ato de Rebeldia

Instituir um curso de Antropologia em Dourados não é apenas preencher uma grade curricular — é um ato de justiça epistêmica. É permitir que os sujeitos sul-mato-grossenses sejam autores, não objetos, de suas histórias. Enquanto isso não acontecer, continuaremos a importar interpretações alheias sobre nossa terra, enquanto nossa voz permanece emudecida. A universidade pública, espaço por excelência de crítica e transformação, falha em sua missão quando ignora que a Antropologia não é luxo acadêmico: é antídoto contra a barbárie do desconhecimento.

Dourados merece mais do que ser um ponto no mapa; merece ser um lugar desse jeito que onde o mundo se reinterprete.

*Produtor Rural em Mato Grosso do Sul.

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