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Ana Maria Bernardelli: ‘A escuta como método e destino’

Por Ana Maria Bernardelli, poeta, ensaísta e crítica literária

Há intelectuais que se dedicam à descrição social e há aqueles que se implicam nos processos culturais que analisam. Mais raros são os que entendem o pensamento como prática ética e a antropologia como forma de responsabilidade histórica. Darcy Ribeiro formulou essa perspectiva de modo decisivo no Brasil, e Pedro Mastrobuono desenvolve hoje reflexões que dialogam com essa mesma linha, na qual conhecer o mundo implica assumir posição diante dele.

Darcy Ribeiro elaborou uma leitura do Brasil fundada na compreensão da cultura como sistema dinâmico de significações, resultante de longos processos históricos de contato, conflito e mestiçagem. Sua antropologia afasta-se de qualquer pretensão de neutralidade epistemológica e assume a condição de saber situado, comprometido com a alteridade e com os grupos historicamente submetidos à violência simbólica e material. O Brasil, em sua obra, não se apresenta como entidade estável, mas como formação social em permanente construção, atravessada por disputas de poder, apagamentos culturais e resistências coletivas.

No centro dessa perspectiva está a escuta antropológica enquanto método e ética. Escutar, para Darcy, não é apenas recolher narrativas, mas reconhecer regimes de conhecimento distintos daqueles legitimados pela tradição ocidental hegemônica. Trata-se de uma escuta que valoriza a experiência vivida, os saberes tradicionais, a oralidade e as cosmologias indígenas e populares, compreendendo-os como formas legítimas de produção de sentido. A antropologia, nesse horizonte, torna-se prática de mediação intercultural, capaz de traduzir universos simbólicos sem reduzi-los à lógica da homogeneização.

Essa concepção estende-se à sua reflexão sobre educação e política pública, compreendidas como dispositivos centrais de produção e reprodução cultural. Para Darcy, a educação constitui um mecanismo estruturante da vida social, capaz tanto de perpetuar desigualdades quanto de promover processos emancipatórios. Sua noção de projeto civilizatório articula cultura, cidadania e memória coletiva, recusando modelos importados e afirmando a necessidade de pensar o Brasil a partir de suas matrizes históricas e antropológicas próprias. O chamado “fracasso” darcyniano revela-se, nesse sentido, uma postura ética de resistência às lógicas de dominação institucional.

É nesse campo conceitual que se inscreve a influência profunda de Darcy Ribeiro sobre Pedro Mastrobuono. Mais do que uma filiação intelectual, trata-se de uma orientação epistemológica que redefine a relação entre palavra, cultura e responsabilidade social. A partir dessa herança, a prática reflexiva de Pedro assume a antropologia como horizonte interpretativo, no qual a linguagem se converte em instrumento de escuta das memórias sociais, das identidades deslocadas e das tradições ameaçadas pelo esquecimento.

Em Mastrobuono, a antropologia manifesta-se como atenção minuciosa às tramas simbólicas que estruturam a experiência humana. Sua escrita opera como etnografia sensível do imaginário, na qual fé, exílio, pertencimento e transmissão cultural constituem eixos centrais de interpretação. A tradição judaica, com sua ênfase na memória, na palavra ritual e na experiência histórica da diáspora, emerge como campo privilegiado de reflexão antropológica, articulando identidade, resistência e permanência cultural.

A influência darcyniana revela-se ainda na recusa de uma produção discursiva descomprometida com o mundo social. Assim como Darcy, Pedro compreende que todo gesto interpretativo implica posicionamento ético e que não existe análise cultural isenta de implicações políticas. Sua escrita inscreve-se no campo da crítica cultural, entendida como prática de desnaturalização das hierarquias simbólicas e de enfrentamento das formas sutis de exclusão produzidas pela linguagem e pela memória oficial.

Nesse percurso, a antropologia deixa de ser disciplina circunscrita ao espaço acadêmico e torna-se prática humanista cotidiana, orientada pela escuta radical do outro. Escutar, aqui, significa reconhecer a agência dos sujeitos históricos, compreender as formas pelas quais produzem sentido e resistem às estruturas que os silenciam. Trata-se de uma escuta que não busca resolver o outro, mas compreendê-lo em sua densidade cultural e simbólica.

O encontro de Pedro Mastrobuono com o pensamento de Darcy Ribeiro é marcado por um encantamento epistemológico consciente. Não há adesão acrítica, mas incorporação reflexiva de um modo de pensar que exige trabalho intelectual permanente, rigor interpretativo e sensibilidade ética. O pensamento darcyniano atua como eixo estruturante, orientando uma prática que articula alteridade, memória e responsabilidade social.

Se Darcy escutou o Brasil a partir de seus fundamentos antropológicos mais profundos — povos originários, culturas subalternizadas, processos educacionais e desigualdades estruturais —, Pedro aprende com ele a escutar o presente em sua complexidade simbólica: suas identidades em disputa, suas narrativas fragmentadas e suas heranças culturais em tensão. Sua escrita constitui-se como espaço de mediação simbólica, no qual o outro não é objeto de análise, mas sujeito de significado.

Nesse diálogo contínuo entre antropologia e palavra, Darcy Ribeiro permanece vivo para Pedro Mastrobuono, não como figura monumentalizada, mas como consciência epistemológica em movimento; uma presença que reafirma que a antropologia só cumpre sua função quando se mantém fiel à escuta da alteridade, à dignidade das culturas e à construção ética de sentidos compartilhados no espaço público. Nesse horizonte, palavra e conhecimento deixam de ser instrumentos de domínio e passam a operar como formas de cuidado intelectual, capazes de sustentar vínculos, preservar memórias e tensionar silêncios. Assim, o diálogo entre Darcy Ribeiro e Pedro Mastrobuono não se encerra como herança estática, mas se projeta como tarefa permanente: pensar, escutar e interpretar o humano como responsabilidade histórica, consciente de que compreender o outro é condição primeira para qualquer projeto verdadeiramente civilizatório.

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