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‘O homem que esqueceu a gravidade’, Por João Roberto Giacomini

João Roberto Giacomini –

Dizem que a gravidade existe para manter as coisas no lugar. Mas, olhando ao redor, começo a desconfiar que ela anda cansada — ou desistiu de nós. Porque o mundo contemporâneo vive tão fora de prumo que até o mais racional dos homens começa a flutuar, meio patético, meio resignado, tentando se equilibrar num cenário onde nada se encaixa, por mais compreensível que seja.

Tudo começou quando percebi que meu carro — simples, modesto, desses de apenas duzentos e cinquenta mil reais — não cabe na vaga do estacionamento do shopping. A vaga cabe um carro; o carro cabe no orçamento; mas os dois não cabem um no outro. Talvez o arquiteto tenha projetado o espaço para modelos soviéticos de 1970. Ou talvez tenha resolvido brincar de Tetris com a vida alheia. O fato é que lá fiquei eu, espremido entre uma coluna e uma faixa amarela, vivendo mais um capítulo do Grande Teatro do Cotidiano Patético.

E, veja bem, isso é apenas o aquecimento.

Basta andar pela cidade para perceber que estamos vivendo um surrealismo perfeitamente homologado pela engenharia urbana.

Pegue, por exemplo, os ônibus articulados. Eles transitam por faixa e meia na avenida Afonso Pena ou na avenida Mato Grosso — não porque são grandes demais, mas porque alguém achou razoável planejar vias para veículos imaginários, talvez menores que um picolé. O ônibus, para não derrubar retrovisores a cada curva, precisa cometer pequenas ilegalidades geométricas só para existir.

E tem mais.

Criaram ciclovias nos canteiros centrais — antes calmos, verdes, quase meditativos. Agora, são avenidas estreitas para bicicletas aceleradas, onde pedestres caminham com medo e ciclistas pedalam com raiva. Bastaria ter alargado avenidas. Mas não: preferiram enfiar um corredor estreito no único lugar que não pedia por ele. Resultado: a cidade virou um videogame urbano em que o nível de dificuldade aumenta toda vez que alguém tenta atravessar a rua.

E se isso já não fosse suficiente, há o espetáculo grotesco dos cabos de telefonia pendurados nos postes. Um emaranhado caótico que parece ter sido montado por um polvo hiperativo com déficit de atenção. Cabos novos, cabos velhos, cabos mortos, cabos que ninguém lembra para que servem — todos estendidos como se a paisagem fosse um varal infinito de inutilidades.

Mas nem é isso o pior: muitos estão arrebentados, caídos em alturas imprevisíveis, ameaçando pedestres que se arriscam entre o mato, restos de obras, objetos abandonados e esse museu de fios derrotados que já viram de tudo, menos manutenção.

Mesmo com alguém pendurado no poste toda semana, o ritual é sempre o mesmo: mexe-se em um fio que serve, abandona-se cinco que não servem mais. Uma economia estranha, onde o que perde utilidade não é retirado — é transformado em poluição visual permanente.

E nada disso, absolutamente nada, parece constranger órgãos de fiscalização ou empresas que faturam como se fossem prestadoras de serviço e não autoras de desastre.

E, como se fosse pouco, há ainda o universo paralelo das rotatórias.
Ali, todos acreditam piamente que estão na preferencial. Todos.
É uma democracia agressiva onde cada motorista se considera soberano, e o pedestre — esse ser vulnerável que ousa existir — não encontra sua vez nunca. Ele espera, calcula, arrisca, recua. A rotatória é o reino onde a civilização perde força e o instinto assume o volante.

Diante de tantas coisas “compreensíveis”, mas completamente absurdas, começo a achar que o ser racional está se tornando um personagem de si mesmo: alguém que tenta reagir com lógica a um mundo que já desistiu de usá-la.

E é aí que percebo: talvez eu tenha esquecido a gravidade.
Ou, mais precisamente, talvez tenha percebido que a verdadeira gravidade do mundo moderno não puxa nada para baixo — apenas para dentro. Puxa para dentro da frustração, do espanto, da risada irritada, da ironia que é a única defesa possível.

Se eu fosse dar um nome a isso, chamaria de Síndrome da Racionalidade Flutuante: o transtorno de viver num ambiente onde tudo parece planejado por alguém que fez o curso técnico de bom-senso por correspondência — e não concluiu.

O homem que esquece a gravidade não sobe.
Ele deriva.
Flutua como um balão furado tentando encontrar um ponto de pouso seguro entre postes abarrotados, vagas estreitas, ônibus contraindo o espaço e ciclovias que desafiam a física — agora desviando também de rotatórias onde ninguém cede passagem e de cabos soltos esperando a próxima vítima.

A saída, talvez, seja aceitar o absurdo como parte da paisagem.
Enxergar a comicidade involuntária do cotidiano.
Rir antes que a irritação vire doença.
E pousar de volta no chão só quando for possível — ou quando houver espaço suficiente para isso.

Porque, no estado atual das coisas, até a gravidade anda com dificuldade de circular.

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