Juliel Batista –
A redação da Folha de Dourados conversou com o artista Luan dos Santos Martins, conhecido como Lumar, um dos nomes mais pulsantes da nova geração de criadores da cidade. Com apenas 22 anos, ele vem construindo uma linguagem visual marcada pela mistura entre afeto, identidade LGBTQIA+, memória periférica e elementos da fauna e flora sul-mato-grossense. Suas obras — que vão das paredes grafitadas às performances e peças de cerâmica — têm atraído olhares por onde passam, justamente por carregarem uma sinceridade rara e uma força estética que nasce de suas vivências mais profundas.
Natural de Coxim (MS) e considerado um dos poucos artistas coxinenses em ascensão no Estado, Lumar encontrou em Dourados um território fértil para florescer artisticamente, após anos reprimindo sua vontade de criar devido a preconceitos, limitações sociais e falta de oportunidades. Desde que chegou à cidade, participou de oficinas, projetos culturais e ações coletivas, sempre buscando espaços onde pudesse existir artisticamente sem pedir permissão. Seu trabalho tem se expandido para além das ruas: já passou pela UFGD, por exposições importantes em Campo Grande e até por uma ocupação artística no Rio de Janeiro.
Hoje, ele se destaca pela coragem de transformar sua história em arte e de colocar no centro do debate temas como afeto LGBTQIA+, resistência periférica e o papel do artista no interior do país. Seus “Lumarzinhos”, personagens que nascem de traumas da infância, se tornaram um símbolo de superação, representatividade e lirismo dentro de sua obra. Ao mesmo tempo, suas performances expõem a fome — literal e simbólica — de ser artista em um território onde o incentivo cultural ainda é limitado.
Em seus relatos, Lumar demonstra uma consciência madura sobre seu lugar no mundo e no cenário artístico regional. Ele fala com firmeza sobre como a arte o salvou, o reconstruiu e o permitiu ocupar espaços antes inimagináveis. Cada gesto, cada cor e cada narrativa que compõe seu trabalho parece carregar uma mensagem: a de que a arte é um caminho de cura, mas também de luta, visibilidade e transformação.
A seguir, a entrevista completa com o artista Lumar:
Folha de Dourados – O que te inspira no dia a dia para criar novas obras?
Lumar – Minha arte nasce muito desse lado infantil que, por muito tempo, ficou escondido. No graffiti, por exemplo, criei os “Lumarzinhos”, que são a personificação do preconceito que eu sofria na escola por ser um garoto gay, pardo e pobre. Esse personagem é a forma que encontrei de transformar dor em expressão, e de transformar o que antes me machucava em afeto, cor e resistência.
“Esse personagem é a forma que encontrei de transformar dor em expressão, e de transformar o que antes me machucava em afeto, cor e resistência.”
Além disso, trabalho com a customização de roupas e com peças de cerâmica, que também recebem as características dos Lumarzinhos. É uma maneira de expandir esse universo para além das paredes e levar minha identidade para objetos do cotidiano, criando pequenas janelas de representatividade no dia a dia de quem encontra meu trabalho.
O que me inspira diariamente a criar novas obras são as minhas próprias vivências, os encontros com outras pessoas e as histórias que atravessam a periferia, o interior e os corpos LGBTQIA+. Cada conversa, cada momento de carinho, cada dificuldade e cada lembrança plantam uma sementinha que vira pintura, performance ou personagem. É como se o mundo ao meu redor falasse comigo, e eu apenas traduzisse.
“O que me inspira diariamente a criar novas obras são as minhas próprias vivências, os encontros com outras pessoas e as histórias que atravessam a periferia, o interior e os corpos LGBTQIA+.”
Um exemplo dessa inspiração é a performance “Tenho Fome”, apresentada na exposição Onde Dourados Se Faz Arte, no MIS, em Campo Grande (MS). Essa obra reflete a realidade de ser artista no interior do estado, onde o apoio é escasso e precisamos trabalhar muito para levar arte, voz e alegria à nossa região.
Nas minhas telas e pinturas, exploro os beijos e os afetos de pessoas LGBTQIA+, trazendo para o centro da sociedade aquilo que muitas vezes é invisibilizado. A afetividade é política, e meu trabalho insiste em mostrar que existimos em afeto, e não só na dor.
“A afetividade é política, e meu trabalho insiste em mostrar que existimos em afeto, e não só na dor.”
Também carrego comigo a força do meu território: a fauna, a flora e o folclore sul-mato-grossense. Por isso, é muito comum ver animais, seres e plantas da nossa região surgindo nas minhas obras, como guardiões do imaginário que construo. Eles se misturam aos Lumarzinhos e às narrativas que vivo, criando um universo onde natureza, memória e identidade caminham lado a lado.
Como e quando você descobriu a arte como forma de expressão?
Cresci em uma família em que as mulheres sempre faziam arte o crochê, pintura em pano de prato, costura. Desde pequeno eu observava tudo com muita curiosidade, encantado com aquelas mãos que transformavam linhas, tintas e tecidos em algo vivo. O difícil é que eu não queria apenas olhar; eu queria aprender e criar também. Mas isso era visto como “coisa de mulher”, e eu era cobrado a fazer o que “homens faziam”. Então, mesmo desejando, eu não me permitia explorar aquele universo.
“Cresci em uma família em que as mulheres sempre faziam arte o crochê (…). Desde pequeno eu observava tudo com muita curiosidade (…).”
Ainda assim, a arte sempre esteve em mim, só que guardada, esperando uma brecha. Eu precisava trabalhar, ganhar dinheiro, sobreviver e, nesse ritmo, o lado artístico ficava sempre para depois. Na minha cidade natal, Coxim, a arte ficava muito restrita ao ambiente escolar, e mesmo lá não havia o incentivo cultural que se encontra em Dourados ou na capital. Parecia que ser artista não era algo possível para alguém como eu.
“Mas [crochê] isso era visto como “coisa de mulher”, e eu era cobrado a fazer o que “homens faziam”.
Foi somente quando me mudei para Dourados, em 2022, que tudo começou a florescer de verdade. Participei de oficinas como a de teatro no Casulo, com a Karla Neves, e a de graffiti, com a Gi Brandão, na Aduems, e ali eu finalmente me enxerguei. Encontrei um espaço onde minha voz tinha lugar, onde meu corpo cabia, onde o que eu sentia poderia virar obra.
“Foi somente quando me mudei para Dourados, em 2022, que tudo começou a florescer de verdade.”
Antes disso, eu me sentia completamente perdido comigo mesmo e com meu lugar no mundo. Não queria ser apenas mais uma engrenagem que trabalha, volta para casa e repete o ciclo. Descobrir a arte foi como abrir uma porta que sempre existiu, mas que eu nunca tinha coragem de atravessar. Pela arte, percebi que posso expressar o que falta na sociedade, denunciar, celebrar, curar e, principalmente, posso existir de um jeito que é meu, verdadeiro e transformador.
“Pela arte, percebi que posso expressar o que falta na sociedade, denunciar, celebrar, curar e, principalmente, posso existir de um jeito que é meu, verdadeiro e transformador.”
Há alguma história marcante ou emocionante que aconteceu durante uma dessas ações?
Acredito que cada vivência tem algo marcante, porque sempre acontece alguma troca significativa. Mas pintar na UFGD foi, sem dúvida, uma das experiências mais emocionantes para mim. Eu não tenho formação acadêmica, sou jovem e nunca imaginei que isso seria possível. Deixar minha arte ali, dentro de um espaço que muitas vezes parece inacessível para quem vem da periferia e do interior, foi simplesmente transformador.
“pintar na UFGD foi, sem dúvida, uma das experiências mais emocionantes para mim.”
As conversas, as trocas e o carinho dos estudantes, professores e trabalhadores que acompanharam o processo são algo que nunca vou esquecer. Cada pessoa que parava para ver, comentar ou só observar já me mostrava que a arte realmente alcança quem precisa e que meu trabalho tinha, sim, um lugar.
Outra experiência profundamente marcante foi participar da exposição no Rio de Janeiro, no Ocupatoca. Crescendo em Coxim e vivendo no interior, eu sempre me senti pequeno como se meu trabalho fosse menor que o dos artistas que eu admirava de longe. Mas lá, no Rio, aconteceu o contrário: artistas que eu considerava gigantes pararam para me ouvir, para saber da minha história, para entender minha vivência. Eles me olharam como igual, como alguém que também constrói, que também cria, que também tem algo a dizer. Aquilo mexeu comigo de um jeito muito forte. Foi como se, pela primeira vez, eu visse o tamanho real da minha própria voz.
“Outra experiência profundamente marcante foi participar da exposição no Rio de Janeiro, no Ocupatoca.”
Essa vivência no Ocupatoca me fez perceber que minha arte atravessa fronteiras não só geográficas, mas internas. E que o que eu trago do interior, da minha identidade, da minha dor e do meu afeto também tem potência no mundo.
“no Rio, aconteceu o contrário: artistas que eu considerava gigantes pararam para me ouvir, para saber da minha história, para entender minha vivência.”

