Wilson Matos (*) –
O episódio noticiado na Fazenda Ypytã (Água Vermelha), de propriedade de um político do estado, não é um caso isolado: ele repete, com léxico atualizado, a velha técnica colonial descrita por Dr. Roberto Lemos dos santos filho — a inversão que transforma o povo originário em agressor e o latifúndio em vítima. Ontem se chamava “guerra justa”; hoje se chama “invasão”, “dano” e “associação criminosa”. O método é o mesmo: fabricar um enredo penal para dilacerar a causa territorial perante a opinião pública e condicionar o Judiciário.
Segundo as lideranças, tudo começou com a notícia do sequestro de uma adolescente indígena. Cerca de cinquenta pessoas se organizaram para buscá-la — uma reação comunitária de proteção à infante, coerente com o dever de resgate e com os modos de sociabilidade dos povos. Ao se aproximarem da sede, teriam encontrado homens os vigiando e, de súbito, fogo no pasto e nos barracões de maquinários.
O ponto nevrálgico é este: se os bens estão segurados, o dano econômico ao proprietário pode ser mitigado ou até compensado; já o efeito simbólico, midiático e político de acusar “índios incendiários” é devastador. É exatamente aqui que a história repete o padrão que Lemos reconstrói: a lei se proclama protetiva, mas opera para negar território e reduzir o indígena à figura de réu.
A tese de Lemos ajuda a nomear o que vemos: o direito indígena (regras internas de cada povo) foi sistematicamente invisibilizado; o direito indigenista (ramo do direito estatal) funcionou com hipocrisia — textos que prometem liberdade e proteção, mas admitem exceções que tudo desconstroem.
A “guerra justa” autorizava, por vias “legais”, a escravização; em 1850, a Lei de Terras legalizou grilagens e expulsões; no século XX, a tutela e a integração forçada buscavam dissolver o indígena na “comunhão nacional”. Em 2025, a engrenagem é outra, porém igual em finalidade: mobiliza-se o sistema penal e o aparato comunicacional para deslegitimar a presença indígena e impedir a demarcação.
É preciso recolocar o eixo constitucional: o art. 231 da Constituição de 1988 reconhece direitos originários às terras tradicionalmente ocupadas — direitos fundamentais, como bem acentuou o ministro Edson Fachin, blindados contra maiorias circunstanciais e cobertos pela vedação ao retrocesso. A Convenção 169 da OIT reforça a obrigação de proteger modos de vida, participação e território. Não há “favores” aqui: há dever estrutural do Estado brasileiro. Quando a opinião pública é capturada por narrativas que criminalizam a vítima histórica, esse dever não diminui; aumenta.
A engenharia do enredo penal. Se houve notícia de sequestro de menor, a movimentação coletiva para resgatá-la não é “tropa invasora”, é reflexo de proteção comunitária. A súbita deflagração de incêndios e danos na presença do grupo, com bens possivelmente segurados, sugere uma prova que não pode ser tratada por manchete:
Requer CADEIA DE CUSTÓDIA estrita, perícia de combustíveis, análise de vetores de fogo, confrontação de horários (ligações, mensagens, GPS), recuperação de imagens e metadados. É indispensável romper o roteiro pronto do “flagrante moral” ENCENADO PARA AS CÂMERAS.
O uso estratégico do seguro e do espetáculo. Em conflitos fundiários, o dano patrimonial coberto funciona como “colateral” para a guerra simbólica. Mesmo sem prejuízo econômico, o latifúndio coleta o dividendo político: manchetes, comoção, pressão sobre autoridades e, no fim, a desqualificação da luta por demarcação. A economia do espetáculo substitui o contraditório: a exibição do fogo ocupa o lugar da prova.
A atualização da “guerra justa”. A categoria colonial que separava “civilizados” e “infiéis” renasce como fronteira penal entre “produtores” e “invasores”. Muda o vocabulário, persiste o objetivo: neutralizar o direito originário e adiar indefinidamente a demarcação. O resultado é conhecido: o conflito, que é jurídico-territorial, é falseado como questão de “ordem pública”, deslocado para a esfera penal, onde a desigualdade de poder é máxima.
O encaminhamento institucional deve ser federal e técnico. Polícia Federal e Ministério Público Federal precisam instaurar investigação com foco em: (a) cadeia de custódia dos vestígios do incêndio; (b) perícia independente dos maquinários e verificação de apólices, datas, cláusulas e sinistros; (c) análise de comunicações e posicionamentos (celulares, rádios, drones); (d) identificação e oitiva dos agentes privados armados; (e) requisição de todas as imagens (CFTV, celulares, mídias).
À FUNAI cabe garantir proteção às lideranças, acionar a Força Nacional e Defesa Civil para documentar a dimensão coletiva do deslocamento em busca da menor. Ao CNJ e ao CNMP compete monitorar o tratamento judicial e ministerial de casos em que o discurso midiático suplanta as garantias constitucionais.
O que está em jogo não é apenas “quem riscou o fósforo”, mas quem escreve a história. A CF/88 rompeu com o paradigma assimilacionista e reconheceu o Brasil como pluriétnico. Quando a narrativa criminal substitui a análise constitucional, reinstala-se — por atalhos — a velha ordem da integração forçada, agora travestida de “defesa da propriedade”. A pergunta correta não é “houve invasão? ”, mas “quem são os originários? ”, “que terra é objeto de direito fundamental? ” e “quem manipula o aparato penal para impedir que isso chegue ao fim?”.
Se no século XVII a guerra justa vendia almas para legitimar cativeiros, no século XXI o espetáculo do fogo vende manchetes para legitimar o esbulho. O dano não é só no pasto: é na verdade constitucional. E é precisamente por isso que o caso Ypytã exige investigação federal, transparência pericial e memória histórica. Onde há terra indígena, o direito é originário; o restante é ruído — ou fumaça.
(*) É Indígena, Advogado Criminalista OABMS 10.689, especialista em Direito Constitucional, é Jornalista DRT 773MS. Residente na Aldeia Jaguapiru – Dourados-MS. [email protected]

