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‘Tradição humanista latino-americana’, por Ana Maria Bernardelli

Ana Maria Bernardelli- Poeta, ensaísta e crítica literária.

O texto A utopia como raiz da América Latina situa-se num horizonte intelectual que remonta à tradição humanista latino-americana inaugurada no século XIX por Simón Bolívar e outros pensadores da emancipação continental. Essa tradição não é apenas política — é também mítica e cultural: vê na América Latina não um subproduto da Europa, mas uma civilização em formação, “ainda por ser inventada”, como dizia Darcy Ribeiro.

Ao evocar nomes como Bolívar, Freire, Frida, Neruda e Che, o texto não os trata como ícones isolados, mas como encarnações de uma utopia coletiva: cada qual, em seu campo (política, educação, arte, poesia, revolução), fez da esperança um método. Esse é um ponto historicamente verossímil — a utopia, na América Latina, de fato, nunca foi mera quimera, mas instrumento de transformação social, desde as independências até as lutas pedagógicas e culturais do século 20.

A ideia de que “a utopia é o próprio tecido da sobrevivência” é altamente apropriada ao nosso continente. Diferente da Europa, onde o pensamento utópico foi frequentemente teórico, na América Latina ele se tornou práxis — incorporado à vida cotidiana, à pedagogia, à fé popular e à política libertária. Essa leitura dialoga com: Ernesto Sábato, que via na América Latina a última guardiã da sensibilidade humana frente à desumanização tecnológica; Eduardo Galeano, em O livro dos abraços, para quem a utopia serve “para caminhar”; Paulo Freire, que chamava a esperança de “ato político”. Portanto, o texto se ancora numa tradição histórica coerente e intelectualmente legítima: a de que o sonho, no continente, é forma de ação — e não fuga da realidade.

A denúncia do “pragmatismo tecnocrático” e do “esvaziamento das utopias” é uma crítica contemporânea pertinente. Desde o fim da Guerra Fria e a ascensão do neoliberalismo, a América Latina tem sido pressionada a alinhar-se a modelos de racionalidade econômica global, o que ameaça sua diversidade cultural e simbólica.

A advertência de Darcy Ribeiro sobre o risco de o homem latino-americano tornar-se “desenraizado” reflete um dilema real: a perda de referenciais identitários frente à globalização. Seu texto, ao retomá-lo, propõe uma revalorização da imaginação como categoria política, o que é tanto histórico quanto atual — basta lembrar as recentes mobilizações culturais, indígenas e ambientais no continente.

A seção que contrapõe a abertura latino-americana à xenofobia europeia utiliza uma estratégia de contraste que, embora estilisticamente eficaz, é metafórica mais do que sociológica. É verossímil no plano simbólico — a hospitalidade, o sincretismo e o “espírito festivo” são traços marcantes de nossas culturas —, mas corre o risco de incorrer numa idealização benevolente do continente. A América Latina também abriga violências, preconceitos internos, exclusões e desigualdades históricas profundas.

No entanto, o texto não nega essas feridas — apenas escolhe exaltar o que nelas resiste como força vital. A idealização é, aqui, estratégia retórica, não ingenuidade: o autor cria um contraponto poético para reafirmar o valor humanista latino-americano frente ao esvaziamento global. A passagem final — “a utopia é a chama que impede a América de ser apenas um mercado” — sintetiza uma tese historicamente lúcida: a cultura latino-americana (arte, literatura, religiosidade, oralidade) tem sido o verdadeiro espaço de resistência civilizatória.

Mesmo quando a política fracassa, a arte e o imaginário mantêm viva a ideia de humanidade.
Essa leitura encontra respaldo nas obras de: Octavio Paz, em O Labirinto da Solidão, ao ver o México como país que “dança diante do abismo”; Mario Vargas Llosa, que, mesmo crítico das utopias políticas, reconhece na ficção latino-americana o poder de inventar mundos possíveis; Darcy Ribeiro, para quem a América Latina é “a nova Roma do mundo mestiço”.

Em síntese, seu texto é intelectualmente apropriado ao contexto latino-americano porque:
reconstrói um arco histórico coerente — da libertação política às resistências culturais contemporâneas. Reivindica a imaginação como ferramenta política, em consonância com as pedagogias e filosofias do continente. Evita o eurocentrismo, propondo uma inversão de perspectiva: é a América Latina, não a Europa, que guarda o sentido humano da civilização. Adota uma linguagem simbólica e ensaística, que é, em si, parte da tradição estética latino-americana. Se há alguma fragilidade, ela está apenas na idealização benevolente do “povo alegre e plural”, o que deve ser lido não como erro factual, mas como licença poética dentro de um texto que assume o lugar da utopia como método e metáfora.

O texto conjuga lucidez crítica e lirismo histórico — pensa o continente com o coração e sente-o com o intelecto. É uma meditação civilizatória que reencanta a ideia de América, devolvendo-lhe aquilo que a modernidade tentou extirpar: a crença de que sonhar é um ato político.

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